publicado dia 12/04/2021
Estratégias para o enfrentamento da exclusão escolar durante a pandemia
Reportagem: Da Redação
publicado dia 12/04/2021
Reportagem: Da Redação
De acordo com um estudo divulgado pelo UNICEF, a partir de dados da PNAD de outubro de 2020, há cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos em situação de desvinculação escolar no país. Por desvinculação escolar entendem-se as situações de estarem fora da escola e em risco de abandono escolar. Neste contexto, o estudo considerou os casos de crianças não matriculadas e aquelas que, mesmo matriculadas, declararam não acessar as atividades remotas (UNICEF, 2021 / PNAD 2020).
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No contexto atual, sob a crise social instaurada pela pandemia, estamos diante de um cenário trágico no qual ainda é muito difícil mensurar os reais impactos no direito à educação de nossas crianças, adolescentes e jovens. Enquanto a sociedade se digladia entre o isolamento social, o negacionismo de Estado, a crise econômica e o aprofundamento da pobreza e da desigualdade social, estamos há um ano com as escolas públicas fechadas em todo o país. Segundo o Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres trata-se de “uma catástrofe que pode desperdiçar o potencial de toda uma geração”. Apesar dos esforços hercúleos de muitas redes municipais, estaduais e dos próprios profissionais de educação, que muitas vezes precisam, sozinhos, carregar como podem sua missão profissional, trata-se de uma tragédia educacional jamais vista antes. E precisamos, por isso, com responsabilidade e compromisso, criar respostas eficazes à altura deste problema.
Artigo produzido por Julia Ventura*, doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e gestora estratégica da Associação Cidade Escola Aprendiz.
Um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, também em outubro de 2020, coordenado por Marcelo Neri e Manuel Camillo Osorio, buscou compreender qual o alcance do ensino remoto no país ao longo deste período e quais as suas características. Dentre as perguntas investigadas na pesquisa estavam: qual o tempo total dedicado ao estudo durante a pandemia? Como variaram a matrícula e a jornada escolar em casa por faixa etária? E por estrato de renda? O tempo de estudo foi mais afetado pela falta de oferta de materiais remotos pelos gestores educacionais ou pela falta de interesse dos estudantes? E, ainda, analisaram como variam todas as respostas acima por estados e pelas capitais.
Segundo o estudo, o tempo médio dedicado à escola para o grupo de 6 a 15 anos foi de 2,37 horas diárias por dia útil, inferior ao mínimo de 4 horas estabelecido pela Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDBE). Os adolescentes de 16 e 17 anos matriculados, embora se dedicassem mais ao ensino remoto, sofreram com uma maior evasão escolar. O principal componente que explica essa diferença é a queda da taxa de matrícula escolar de 90% para 35%, fato que já ocorria antes da pandemia. A inexistência de oferta das atividades remotas por parte das redes escolares foi percebida pelos estudantes como o fator determinante para a desvinculação escolar.
Estes dados são confirmados quando observamos um outro estudo, realizado pelo Departamento de Ciências Políticas da USP e coordenado por Lorena Barberia, que desenvolveu um índice de educação à distância para medir a eficiência dos planos de ensino remoto em todo o país. O índice foi composto por quatro dimensões que visam identificar: 1. os meios utilizados para acessar as aulas remotas; 2. o acesso que professores e alunos tiveram aos materiais e equipamentos necessários, 3. a capacidade de supervisão dos educadores para o acompanhamento das atividades e 4. a cobertura que os planos obtiveram. Os resultados, que poderiam variar entre 0 e 10 – onde zero significa que nenhuma ação foi tomada e dez que todas elas ocorreram de forma eficiente, tiveram média de 2,38 para os estados e 1,6 para os municípios. De acordo com a pesquisa, a oferta de um plano de atividades remotas apenas se consolidou no país após 4 meses de pandemia, quando 90% dos municípios finalizaram esta etapa, no entanto, 10% não a concluíram. Além disso, apesar da internet ter sido a principal forma de transmissão das atividades, apenas os estados do Pará e do Maranhão distribuíram equipamentos e plano de dados para os estudantes sem uma cobertura total. Em relação às atividades oferecidas via materiais impressos, apenas 50% dos estados e 20% dos municípios os distribuíram.
Outro fator de destaque na pesquisa conduzida pela FGV indicou o profundo risco de agravamento das desigualdades escolares como resultado deste período de desvinculação escolar. A análise do tempo de estudos por estrato de renda mostrou que quanto mais pobre é o indivíduo, menor é a frequência na escola, menor a quantidade de exercícios recebidos e menor o tempo dedicado a eles. De acordo com o estudo, os alunos mais pobres são 633% mais afetados pela falta de oferta de atividades escolares que os alunos mais ricos. Assim, seus coordenadores concluem que “a desigualdade de oportunidades e de resultados educacionais aumentará durante a pandemia, quebrando tendência histórica de décadas”.
Fica nítido, portanto, que o país não soube responder de forma eficiente ao desafio de assegurar o direito à educação para suas crianças e jovens num contexto de crise. Nesse sentido, gostaria de destacar estratégias fundamentais cuja capacidade de respostas a muitos destes desafios tem se demonstrado promissora. Tais aprendizagens derivam de um conjunto de experiências acumuladas até aqui por meio de projetos fundamentados na busca ativa de crianças e adolescentes fora da escola ou em risco de evasão escolar realizados pela Cidade Escola Aprendiz em parceria com municípios e organizações sociais em diferentes estados brasileiros. Em especial, um projeto realizado no ano de 2020 em parceria com UNICEF e Itaú Social para a implementação da Busca Ativa Escolar em dois municípios – Paulista (PE) e Itapevi (SP) – possibilitou a construção de um plano de ações direcionado a esse enfrentamento no contexto específico da pandemia.
Com base nestas experiências e nos estudos que as subsidiaram, apresento a seguir um passo a passo para a implementação de estratégias de busca ativa em redes e escolas:
É imprescindível que os municípios e estados sejam capazes de realizar um mapeamento periódico dos estudantes em situação de desvinculação escolar. A produção de informações atualizadas sobre os alunos que não acessaram ou estão tendo dificuldade de acessar a oferta escolar compõe a base de dados necessária para a promoção de ações de busca ativa. Além disso, é preciso localizar crianças e adolescentes que estejam sem vínculo de matrícula e reinseri-los no sistema de ensino.
No contexto da pandemia, a impossibilidade de executar um monitoramento de frequência escolar presencial trouxe aos municípios e estados o desafio de acompanhar remotamente a adesão dos estudantes às atividades disponibilizadas, ou mesmo de saber quais estudantes demandam outros tipos de apoio à sua proteção social, como, por exemplo, o acesso à segurança alimentar ou aos materiais pedagógicos. Por isso, a estratégia pressupõe a utilização de fontes de informação que estejam sendo produzidas pela gestão educacional por meio da tentativa de contato com as famílias dos estudantes, além de demandar um mapeamento adicional de crianças e adolescentes fora da escola. Como exemplo, destacam-se:
Com base no diagnóstico de mapeamento dos casos prioritários para localização e atendimento, devem-se efetivar as ações de busca ativa nos territórios das cidades por meio de duas estratégias centrais: 1. Visitas Domiciliares e 2. Contatos telefônicos. Sabe-se que as escolas não dispõem de profissionais com a atribuição de realizarem visitas domiciliares e, por isso, outros atores do poder público e da sociedade civil precisam contribuir com esta tarefa.
O direito à educação, como direito humano fundamental e inalienável, é de reponsabilidade não apenas das redes escolares, mas de todo o sistema de garantia de direitos das crianças, dos adolescentes e jovens, além das famílias e da sociedade. Do mesmo modo, uma situação de exclusão escolar não se origina apenas em problemas escolares, mas se relaciona a fatores extraescolares que precisam ser solucionados por um conjunto de políticas públicas de forma integrada.
Tendo em vista essa necessidade, é importante apontar o potencial de ação intersetorial que municípios e estados dispõem para que, juntos, possam criar um fluxo de trabalho que compartilhe informações e busque soluções eficientes no enfrentamento da exclusão escolar. Dentre eles:
Instância | Atores |
Secretaria Municipal de Educação | Gestores, professores, funcionários, familiares. |
Secretaria Municipal de Saúde | Agentes Comunitários de Saúde, Coordenadores de Clínica da Família e funcionários. |
Secretaria Municipal de Assistência Social | Assistentes sociais e técnicos dos CRAS e CREAS. |
Secretaria Municipal de Esporte | Profissionais dos equipamentos e projetos esportivos. |
Secretaria Municipal de Cultura | Profissionais dos equipamentos e projetos culturais. |
Secretaria Municipal de Segurança Pública | Guardas Municipais, em especial da Ronda Escolar. |
Conselhos Tutelares | Conselheiros Tutelares. |
Conselhos Municipais | Conselhos Municipais de Educação e de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. |
Demais órgãos de proteção social do poder judiciário | Ministério Público, Promotorias, Vara da Infância, dentre outros. |
Diretoria Regional da Secretaria Estadual de Educação | Gestores, professores, funcionários, familiares. |
Organizações sociais | Projetos sociais, educacionais, esportivos, culturais, dentre outros. |
Associações locais | Associações de moradores, líderes comunitários, igrejas, comércio, dentre outros. |
Tem destaque o tripé formado por Educação – Assistência Social – Saúde para maior efetividade das ações intersetoriais, tendo em vista seu caráter de atendimento ao público de maior vulnerabilidade social e capilaridade nos territórios. É recomendável, portanto, a criação de um Grupo de Trabalho específico para a busca ativa com vistas ao estabelecimento de fluxos de articulação entre os equipamentos públicos em nível territorial, incluindo a escola, numa parceria para a identificação dos estudantes com os quais eles não conseguem contato. Em especial, a Estratégia da Saúde da Família, com a equipe de agentes comunitários de saúde e as equipes do CRAS e abordagem de rua (se houver) detêm enorme potencial.
Soma-se a isso o potencial de reconhecimento dos territórios da cidade por parte das organizações e associações da sociedade civil, constituindo-se em importantes aliados nesta tarefa. Nestes casos, recomenda-se a mobilização dessas instituições por meio dos conselhos municipais ou fóruns locais já instituídos. Esta é uma estratégia importante para alcançar um público ainda mais invisível às políticas sociais. Muitas vezes, as instituições de referência para as comunidades, como associações de moradores, igrejas, OSCs, projetos sociais, culturais ou esportivos, ou lideranças locais, por conhecerem mais profundamente as realidades locais e seus residentes, podem contribuir sobremaneira para a localização de crianças/adolescentes em situação de desvinculação escolar.
Para fortalecer essa mobilização, é necessário estabelecer um fluxo de comunicação e engajamento dessas organizações, no sentido de efetivar uma parceria permanente e propor a eles estratégias de divulgação e “chamamento” das famílias para o retorno à escola ou à realização das atividades escolares por meio de rádios comunitárias, jornais locais, etc.. De outro lado, este tecido social ativo pode apoiar a produção organizada de demandas das famílias em relação aos atendimentos dos serviços públicos necessários à superação de suas necessidades e garantia de direitos, assim como a produção de soluções oriunda da própria solidariedade social local.
É possível também aproveitar o potencial dos estudantes em se constituírem como agentes de identificação e engajamento de crianças, adolescentes e jovens em situação de desvinculação escolar. Para isso, o ideal é que a escola crie um projeto que propicie que os próprios estudantes mobilizem seus pares a retomarem sua trajetória escolar. Inclusive, é importante que se criem mecanismos para mapear os interesses dos estudantes de forma a suscitar uma maior motivação pelas atividades escolares, tendo em vista que o desinteresse pela escolarização tem sido destacado como um dos principais motivos da evasão.
O grêmio estudantil ou os representantes de turma podem liderar essa estratégia juntamente aos professores e gestores de modo a organizar ações de comunicação e pesquisa com as famílias, como por exemplo, o envio de cartas e mensagens endereçadas aos estudantes ausentes ou àqueles que abandonaram a escola, a produção de vídeos caseiros que chamem os colegas para os estudos, o uso de grupos de whatsapp (ou afins) para ampliar o alcance de contatos, e toda sorte de canais que tenham maior circulação e aderência entre os jovens.
Por fim, considerando todas as estratégias apontadas, é fundamental que se consolide um banco de dados capaz de organizar as informações mapeadas e obtidas com o acompanhamento dos casos de modo a monitorar a situação escolar das crianças, adolescentes, jovens e suas famílias. No contexto de crise social instalada, é possível que a situação familiar apresente demandas flutuantes que apenas um monitoramento contínuo será capaz de identificar, para subsidiar as ações de busca ativa necessárias.
Com esse conjunto de sugestões, esperamos que as aprendizagens aqui apresentadas possam inspirar governos e profissionais a conduzirem seus trabalhos na direção da garantia do direito à educação para todas e todos, com foco prioritário naqueles que mais precisam e que, para tanto, demandam o compromisso e uma postura ativa e permanente de todos nós.
FOLHA NA SALA (Podcast). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2021/03/podcast-faz-balanco-do-impacto-da-pandemia-na-educacao.shtml
NERI, Marcelo; OSORIO, Manuel Camilo. Tempo para a Pandemia (Sumário Executivo). Rio de Janeiro, RJ, Outubro de 2020. 24 páginas. Disponível em https://www.cps.fgv.br/cps/TempoParaEscola/
UNICEF, Enfrentamento da cultura do fracasso escolar: Reprovação, abandono e distorção idade-série. Dados publicados no site da estratégia Trajetórias de Sucesso Escolar (trajetoriaescolar.org.br). Jan 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/enfrentamento-da-cultura-do-fracassoescolar
UNICEF, Busca Ativa Escolar em Crises e Emergências. Disponível em: https://buscaativaescolar.org.br/criseseemergencias/
*Julia Ventura é Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio, atuando com projetos sociais desde 2005 em organizações da sociedade civil como a FASE, o Viva Rio, a Redes da Maré e o Uniperiferias. Atualmente é gestora estratégica na Associação Cidade Escola Aprendiz, onde já atuou como gestora do Aluno Presente, coordenando projetos de enfrentamento da exclusão escolar em vários municípios do país. Também atuou como professora de Sociologia no Ensino Médio e pesquisadora, sendo autora de artigos acadêmicos e profissionais.
O que é a #Reviravolta da Escola?
Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.
Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.