publicado dia 10/12/2019

Trabalho infantil familiar perpetua pobreza e causa abandono escolar

Reportagem:

Maurício de 11 anos começou a faltar no Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), serviço oferecido pela Prefeitura de São Paulo, para ajudar o pai, pedreiro em uma obra. Já Rose, 10, começou a ir menos para as aulas para cuidar da irmã, de 2 anos.

Os irmãos, moradores do Jardim Ângela, no extremo sul de São Paulo (SP), começavam a reproduzir algo que os pais tinham passado na infância: pouco estudo e trabalho desde cedo para auxiliar no sustento da família, com poucos recursos. Ao perceber a situação, a rede de proteção à infância fez uma visita à família e orientou o pai que Maurício precisava ir para o CCA e ainda não podia trabalhar. Além disso, a equipe conseguiu uma creche para a irmã menor, possibilitando que Rose não deixasse as aulas para ser babá dela.

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A situação de Maurício e Rose do Jardim Ângela, que trabalham ajudando os pais, ainda é bastante comum. Cerca de 190 mil crianças e adolescentes de 5 a 13 anos, ou 0,7% desse grupo, estavam ocupados em atividades econômicas em 2016, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Dados mais recentes, de 2019, revelam o total de 1,8 milhão de crianças e jovens realizando trabalho infantil – sendo 1,3 milhão em atividades econômicas e 463 mil em atividades de autoconsumo Quanto à faixa de idade, 21,3% tinham de 5 a 13 anos; 25,0%, 14 e 15 anos e a maioria, 53,7%, tinha 16 e 17 anos de idade.

Em 2016, o contingente de 1,3 milhão de trabalhadores que realizavam atividades econômicas em situação de trabalho infantil concentrava-se principalmente na atividade não-agrícola (75,8%). Eles estavam inseridos, majoritariamente, como empregados (57,7%), seguidos pelos que eram trabalhadores familiares auxiliares (30,9%). Os serviços domésticos respondiam por 7,1%, ou seja, havia 92,7 mil estavam nessa atividade.

Quanto às ocupações, a pessoa em situação de trabalho infantil era, principalmente, trabalhador dos serviços, vendedor dos comércios e mercados (29,0%) e trabalhador em ocupações elementares(36,2%).

Na faixa de 16 a 17 anos, o contingente desses trabalhadores em ocupações informais foi estimado em 772 mil pessoas, o que significava uma taxa de informalidade de 74,1% entre os que realizavam atividades econômicas nesse grupo etário.

Nesse grupo, predomina o trabalho como auxiliar familiar, ou seja, quando as crianças ajudam outro morador de seu domicílio em alguma atividade econômica sem serem remuneradas por isso.

“A mãe que é doméstica e a filha ajuda, por exemplo. Ela não recebe, mas auxilia alguém que recebe”, explica a economista da coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE, Flávia Vinhaes.

As crianças nessa condição são 73% das que estão ocupadas em atividades econômicas dentro desse grupo etário. Essa situação puxa o rendimento médio das crianças ocupadas nessa idade (com ou sem remuneração) para R$ 132.

Também na faixa de 5 a 13 anos, existem 292 mil crianças que trabalhavam na produção para consumo da família, como aquelas ocupadas na agricultura de subsistência.

trabalho infantil nas feiras

Quando consideradas as crianças de 0 a 17 anos, de um total de 40,1 milhões de crianças de 5 a 17 anos no Brasil, 2,4 milhões estavam ocupadas, representado quase 6% do grupo. A ocupação é majoritariamente concentrada no grupo de 14 a 17 anos de idade, sendo 1,94 milhão nessa faixa etária. O número de horas efetivamente trabalhadas obedeceu a um movimento crescente, segundo os grupos de idade, sendo registradas jornadas semanais de 8 horas, em média, para os menores (de 5 a 9 anos), e de 28,4 horas, em média, para os maiores (de 16 ou 17 anos).

“Dessas crianças ocupadas em atividades econômicas, 98,4% estavam na escola. É uma taxa bem elevada. Das que não trabalham, ela é de 98,6%, por exemplo. Só percebemos essa diferença na frequência nas crianças mais velhas, que abandonam o estudo para trabalhar”, aponta a economista.

A região com a maior proporção de trabalho infantil de 5 a 13 anos de idade, foi a Região Norte, com um nível de ocupação da ordem de 1,5% (aproximadamente 47 mil crianças), seguida pela Região Nordeste, com 1% (aproximadamente 79 mil crianças).

O trabalho entre as crianças de 14 a 17 anos foi proporcionalmente maior na Região Sul, representando 16,6% da população desse grupo de idade na região. Do total de crianças que estavam no mercado de trabalho em 2016, 34,7% eram do sexo feminino e 65,3%, do sexo masculino.

Quando observada a ocupação por grupos de idade, segundo o sexo, houve aumento da participação feminina na ocupação, no grupo de 14 a 17 de idade, se comparado com o grupo dos menores, de 5 a 13 anos de idade.

Quanto às características de cor ou raça, foi observado que tanto no grupo etário de 5 a 13 quanto no de 14 a 17, dentre aqueles que encontravam-se ocupados, havia um predomínio de crianças pretas e pardas em relação às brancas, representando no primeiro grupo, 71,8% e no segundo, 63,2%.

O IBGE, que realiza a PNAD Contínua, reforça que o trabalho infantil tem diversos efeitos perversos sobre o desenvolvimento das crianças.

“Dentre os que demandam maiores preocupações estão, de um lado, a entrada tardia na escola e a evasão escolar e, de outro, as enfermidades contraídas em função do trabalho realizado”, informa a pesquisa.

O rendimento médio mensal real habitualmente recebido de todos os trabalhos pelas pessoas de 5 a 17 anos de idade, ocupadas, com rendimento de trabalho em 2016, foi estimado em R$ 514. Esse valor apresentou variações por sexo e grupos de idade.

Trabalho x Aprendizagem

A PNAD Continua ressalta ainda “que o fato de a criança trabalhar em casa ou com a família não descaracteriza por si só o trabalho infantil. Mesmo no espaço do trabalho em família, sabe-se que muitas delas são submetidas a estafantes jornadas de trabalho na lavoura familiar ou são responsabilizadas por tarefas domésticas e cuidados com irmãos e irmãs menores em casa, sem que lhes seja garantido, por exemplo, tempo para os estudos ou brincadeiras. Por outro lado, essa preocupação não pode ser radicalizada no sentido de excluir a participação desse grupo das tarefas domésticas leves, que formam o senso de responsabilidade pessoal em relação ao núcleo familiar”.

O pedagogo e coordenador da equipe multidisciplinar do Centro de Referência Integral de Adolescentes (Cria), André Araújo, lembra que a diferença entre trabalho infantil e educação doméstica é quando as tarefas se tornam responsabilidade da criança ou do adolescente e ele passa a ser cobrado por isso. “É quando os pais dizem ‘vou sair e quando voltar quero que você faça comida para os irmãos’ e isso gera sanção”, exemplifica.

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Araújo lembra que no caso do trabalho doméstico a relação de gênero pesa, uma vez que as meninas são obrigadas a fazer determinadas atividades. “Quando tem possibilidade de trazer uma menina do interior para a capital, essa menina vai estudar e trabalhar e vira serviçal permanente dessa casa. Assume esse trabalho de empregada doméstica”, lembra. Apesar da redução desse tipo de comportamento, esse ainda é o sonho de famílias no meio rural, enviar as filhas para morar na cidade. “É maléfico, pois não permite projetar algo diferente e vai reproduzindo um ciclo de miséria”, considera.

Além do trabalho doméstico, muitas meninas que trabalham nessas condições acabam sofrendo violência sexual. “Os homens da casa acham que são seus senhores. É difícil romper esse ciclo, mas não é impossível, pois muitas acreditam que aquele lugar é ao qual pertencem”, afirma.

Estela Scandola, doutora em Serviço Social, pesquisadora da Escola de Saúde Pública do Mato Grosso do Sul, ressalta que o trabalho do adolescente é travestido de aprendizagem familiar. “Isso acontece quando pai e mãe têm profissão e querem passar para os filhos. Mas há casos em que há comprometimento físico, como trabalhos em borracharia, indústria têxtil, rural ou feira livre, em que meninos e meninas trabalham carregando objetos pesados”, ressalta. Apesar desses trabalhos ocorrerem para ajudar na renda doméstica, Estela acredita que a família não vai sair da pobreza por conta da ajuda daquela criança ou adolescente.

No Brasil, 47,6% das pessoas de 5 a 13 anos de idade exerciam atividade agrícola em 2016, enquanto 21,4% das pertencentes ao grupo de 14 a 17 anos de idade encontravam-se ocupadas nessa atividade. Na agricultura tradicional, crianças e adolescentes realizam trabalhos sob supervisão dos pais como parte integrante do processo de socialização, ou seja, como meio de transmissão, de pais para filhos, de técnicas tradicionalmente adquiridas.

trabalho infantil no carnaval

“A situação de trabalho como parte do processo de socialização, no entanto, não deve ser confundida com aquela em que as crianças são obrigadas a trabalhar, regularmente ou durante jornadas contínuas, em troca de alguma remuneração ou apenas para ajudar suas famílias, com consequentes prejuízos para seu desenvolvimento educacional e social”, informa o IBGE.

Outro resultado observado na pesquisa diz respeito ao fato de as crianças menores estarem mais concentradas no grupamento de atividades Agricultura, enquanto os maiores se concentravam mais no Comércio e reparação. A participação de ambos os grupos era bastante semelhante, porém, em Serviços domésticos.

Produção para o próprio consumo

Em 2016, aproximadamente 716 mil crianças de 5 a 17 anos de idade realizavam trabalho na produção para o próprio consumo. Destas, 91,6% encontrava-se na escola, e as demais não estudavam. Tais resultados sugerem que, apesar de as crianças terem realizado essas tarefas fora da produção econômica, isso não impediu que a maioria absoluta delas se mantivesse na escola.

No Brasil, não há um critério oficial para determinar o número de horas máximas permitidas às crianças para o exercício dessas atividades não econômicas. “O importante é que esse horário não seja prolongado de forma a afetar o tempo dedicado à escola e às atividades recreativas. É igualmente importante que os afazeres não apresentem condições perigosas, como tarefas que envolvam carregar cargas pesadas ou que causem dores musculares, cansaço e esgotamento, assim como problemas respiratórios ou intoxicação, ou ainda que impeçam ou atrapalhem as crianças no cumprimento de suas atividades escolares”, informa o órgão.

O número médio de horas semanais dedicadas pelas crianças aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas no Brasil, em 2016, foi de 8,4 horas.

São Paulo

Em São Paulo, o trabalho infantil concentra-se em locais da periferia como é o caso do Jardim Ângela e é encontrado em pequenas empresas familiares (lava rápidos, oficinas, marcenarias, buffets, bares, bancas que vendem eletrônicos, floriculturas, oficinas de costura), além das feiras livres.

O presidente pela sociedade civil do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA), Carlos Alberto de Souza Júnior, que é morador do bairro, afirma que o trabalho infantil familiar é bastante comum na região, principalmente em pequenos e médios negócios de família. “Isso é facilitado pela ausência de espaço que crianças e adolescentes possam ficar no contraturno escolar, fazendo com que famílias as coloquem para trabalhar”, considera.

A feira que ocorre na rua da igreja católica do Jardim Ângela aos domingos também conta com a exploração da mão de obra infantil. Além disso, o presidente do CMDCA lembra que há muitas meninas no trabalho doméstico, que é mais invisível, pois ocorre na própria casa, em que são responsáveis por cuidar do irmão.

Um dos serviços que auxiliam na manutenção das crianças e adolescentes fora do trabalho é o CCA (Centro para Crianças e Adolescentes), que oferece contraturno escolar e é um equipamento da assistência social da Prefeitura de São Paulo. “Está sofrendo risco de fechar por diversos motivos”, afirma Souza Júnior.

Ao todo, existem 487 CCAs em São Paulo, sendo 33 na região do Jardim Ângela. Crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, com idade entre 6 e 15 anos, podem ser matriculados nos CCAs, vinculados à assistência social do município. No local, além de permanecerem por quatro horas diárias sob cuidados de responsáveis, participam de atividades culturais e esportivas, entre outras.

Questionada sobre possíveis mudanças no sistema de gestão dos CCAs, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) não deu retorno até a publicação dessa reportagem.

trabalho infantil no carnaval

A persistência do trabalho infantil em regiões periféricas, como o Jardim Ângela, tem aspecto cultural, segundo Carlos Alberto de Souza Júnior. “É uma condição histórica. As crianças começam a trabalhar cedo por necessidades econômicas. Há também uma vulnerabilidade, uma vez que o dinheiro gerado por essas crianças é considerado importante para a renda da família”, afirma.

O combate a essa prática passa, segundo o presidente do CMDCA, por uma política pública voltada para a família, com formação para trabalho e renda, além de encaminhar as crianças para o CCA.

“Tem de criar alternativas. A maior parte do trabalho infantil é por condições econômicas. Há falta de perspectiva. Se conseguir dar condições para a família de emprego e ter lugar para os filhos ficarem no contraturno, tenho certeza que não teríamos crianças com 10 anos vendendo bala”, afirma.

Pobreza e naturalização

Souza Júnior lembra ainda que em momentos de crise econômica, como o atual, aumenta o número de crianças vendendo balas nas ruas e transporte público. “Isso é visto como trabalho infantil pela sociedade, enquanto o adolescente que trabalha na empresa dos pais é visto como algo normal”, compara.

Nesse sentido, Estela Scandola lembra que há um recorte de classe, fazendo com que os trabalhadores infantis sejam oriundos de famílias com renda familiar abaixo dos três salários mínimos, ou seja, são filhos da classe mais empobrecida.

+Como a desigualdade de gênero se manifesta na educação das meninas

Nesse caso, segundo a pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul (MS), há uma naturalização do trabalho infantil como forma de educar crianças e adolescentes. “Há discurso de que o trabalho é uma forma de prevenir drogas, conter sexualidade e marginalidade. Mas essa é uma opção para os pobres, os ricos vão ter outras oportunidades”, reforça.

O combate a esse tipo de prática, segundo a pesquisadora, passa pelas políticas da assistência social. Quando há cortes, como anunciados pelo governo federal, há aumento do trabalho infantil. “As políticas públicas são importantes. O trabalho infantil não é só cultural, ele é estruturante na sociedade brasileira”, define Estela.

Leis e denúncias

O Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de erradicar o trabalho infantil até 2025. No entanto, se permanecer no atual ritmo de combate ao problema, ele não alcançará esta meta, segundo o estudo ‘Trabalho infantil nos ODS’.

A Constituição Brasileira traz a previsão da proteção dos direitos das crianças e adolescentes:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Atualmente, o trabalho é permitido por lei a partir dos 16 anos, desde que não seja em situação insalubre, perigosa ou no horário noturno, condições em que só é autorizada a contratação a partir dos 18 anos. Aos 14, entretanto, os interessados já podem ingressar no mercado de trabalho como aprendizes.

Para realizar uma denúncia, ligue: Disque 100 – o disque denúncia é gratuito e anônimo.

 

 

Publicado originalmente na Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, com autoria de Guilherme Soares Dias.  Fotos de Tiago Queiroz e Débora Klempous

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