publicado dia 31/08/2016
Especialista elenca quatro principais ameaças ao direito à educação
Reportagem: Ana Luiza Basílio
publicado dia 31/08/2016
Reportagem: Ana Luiza Basílio
“As mudanças conjuntural e de clima político vivenciadas no final de 2015 e início de 2016 têm o potencial de causar uma virada radical na concepção de direito à educação que estava se construindo no país nos últimos anos, sobretudo em relação à ampliação das garantias a ele relacionadas, dentre as quais está colocado o financiamento”.
A reflexão apresentada pelo professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, embora atual, considera a retomada dos últimos quinze anos de política educacional. Ao recuperar algumas ações que, em sua leitura, permitiram o avanço das políticas ligadas ao direito a educação, o especialista também deflagra alguns riscos que podem inviabilizá-lo na atual conjuntura.
“Se você recupera esse período, entre vários percalços, há o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) que vincula mais recursos à educação, com maior participação da União; a retirada da Desvinculação de Receitas da União (DRU) em 2009, com efeitos em 2011, e que também significou um avanço, com mais recursos, e com um patamar mínimo abaixo do qual o Estado estaria violando o direito à educação dos estudantes”, avalia, sinalizando alguns dos avanços das últimas décadas.
Para ele, a continuidade desse processo de avanço social e econômico pôde ser aferida também em 2014, quando o Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu outros dois regimes de financiamento, que reafirmou a necessidade de ampliar os recursos existentes para assegurar a educação para todos e com a qualidade desejada.
“Para além do regime de vinculações dos mínimos constitucionais, como garantido no artigo 212 da Constituição Federal e pelo Fundeb, o PNE estabelece o CAQ [Custo Aluno-Qualidade], um regime que avançaria de uma lógica de mera disponibilidade de receita [hoje, o valor investido por aluno é fruto do valor disponível vinculado dividido pelo número de alunos] para um patamar de custo, com referência na qualidade e que, uma vez regulamentado, passaria a compor o conteúdo do direito à educação”, avalia.
Art. 212 da Constituição Federal
A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
O outro regime de financiamento é o de metas relacionadas ao PIB que, na análise do especialista, ganha concretude no PNE, mas tem base em emenda constitucional [Emenda n. 59, de 2009], que determina essa inovação no artigo 214 da Constituição. “É posto basicamente o seguinte: que os regimes anteriores – vinculação e CAQ – são sozinhos insuficientes para a implementação do direito em sua integralidade, já que é necessária uma elevação gradativa dos recursos arrecadados e disponíveis para a educação, pensando aí sobretudo o desafio de universalização das etapas básicas obrigatórias, ampliação do acesso da educação infantil em creches e ampliação do acesso ao ensino superior”, esclarece Salomão.
Ele explica que o CAQ é essencial para manter um patamar adequado da manutenção do sistema de educação básica, mas não suficiente diante de todos os desafios por não incorporar investimento para construção de creches ou universidades, nem a manutenção do ensino superior público. “Uma vez implantado o parque escolar, no futuro, pode até ser que seja possível diminuir o percentual dos 10% do PIB, mas hoje o que precisamos é de um regime emergencial de elevação do gasto”, reconhece.
A demanda, no entanto, parece estar na contramão das diretrizes econômicas propostas pela atual gestão federal. O que, para Salomão, significa risco. “O que está em risco é esse progressivo reconhecimento da importância do financiamento como uma dimensão do direito à educação, para além dos patamares mínimos estabelecidos na Constituição Federal de 1988. A virada ocorrida no último período ameaça esse ideal de progresso e coloca em xeque, mais uma vez, a proteção jurídica da dimensão do financiamento desse direito”, opina.
Diante desse cenário e, em diálogo com as perspectivas de financiamento, em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, Salomão Ximenes elencou quatro ameaças ao direito educação na atualidade. Confira.
Segundo o especialista, a principal expressão do risco ao direito à educação, a PEC 241/2016, relativiza a ideia mais básica dos mínimos constitucionais para a educação. “No artigo 4º está colocada a correção inflacionária como alternativa para o financiamento de educação e saúde, o que suspende temporariamente a garantia de gasto mínimo da União em educação. É impossível imaginar a manutenção da agenda do PNE em um cenário em que sequer o mínimo, o primeiro degrau, está assegurado. Então essa é uma primeira ameaça do ponto de vista de reforma constitucional”, avalia Ximenes.
Ele entende que a PEC ainda se relaciona com um conjunto de outras ameaças que sempre estiveram colocadas no debate público, mas não dentro de uma perspectiva hegemônica, uma vez que ela se dava em torno da ampliação progressiva da oferta pública, do financiamento. “No momento em que sai de cena esse acordo, esse pacto básico, as agendas que estavam aí vão ganhando espaço e conseguindo adesão”, sentencia.
Para Salomão, a privatização vem aparecendo como solução para a chamada crise de financiamento. “Um caso típico é o do estado de Goiás que propõe de maneira mais sistemática uma política de privatização, aprovando a lei das organizações sociais (OS), incluindo a educação e propondo já o repasse de uma diretoria regional de ensino para gestão das organizações sociais em que 70% dos docentes seriam contratados diretamente por essas organizações e não mais pelo Estado”, esclarece o especialista.
Os argumentos utilizados para os casos, como ele cita, são que, com isso, se escapa dos limites da Lei da Responsabilidade Fiscal e, de quebra, se resolve o problema do financiamento da previdência, por exemplo. Por outro lado, Ximenes diz ser evidente que a política de privatização do Estado de Goiás se coloca muito diretamente relacionada a um programa de ajuste fiscal na educação para redução dos custos.
Ximenes ainda alerta sobre a força que os agentes econômicos privados, sobretudo os empresariais, vêm ganhando na determinação das políticas educacionais. “Eu não vejo problema deles participarem do debate público sobre educação, mas a questão é que essa atuação, muitas vezes, acontece fora dos processos de discussão legitimamente construídos pela sociedade civil, como os fóruns e as conferências, o que acaba gerando embates”, sinaliza.
Para Salomão, o que está colocado é uma perspectiva educacional pautada em produtividade, em resultado de aprendizagem e em eficiência econômica, o que acaba também por promover movimentos de redução de financiamento das redes de ensino, como ele explica. “A proposta de reorganização escolar de São Paulo em 2015, por exemplo, em parte teve relação com uma proposta político pedagógica da Secretaria de Educação, que também tem uma matriz nas reformas inspiradas pelos institutos empresariais, sobretudo o Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE); mas tem também um viés mais imediato que é o da redução de custo”, aponta.
O cenário de ajuste fiscal, em sua análise, pode acelerar reformas educacionais com foco na eficiência econômica da educação, configurando uma ameaça severa ao direito a educação.
Ele ainda entende que, a longo prazo, essas medidas podem indicar a intenção de municipalizar a rede estadual, o que significaria entregar a responsabilidade pela oferta da rede municipal às redes municipais. “Esse debate também poderia ser feito, desde que de maneira equilibrada, envolvendo os municípios e discutindo as questões do financiamento. A questão é que a pressão do ajuste estrutural se relaciona com esse tipo de proposta no sentido de que ela acaba acelerando algumas decisões, e faz com que elas sejam feitas como em São Paulo, de forma autoritária, unilateral, sem diálogo”, condena.
Salomão entende também que a proposta que está colocada pelo governo interino, de estagnação do gasto com base na inflação, a tentativa de levar isso aos estados e municípios e considerando o teto da Lei de Responsabilidade Fiscal, não deixará outra alternativa senão o caminho da privatização para ampliação das redes. “Aí não se aplica o argumento de que ela [privatização] vem para qualificar o serviço, porque ela tem como justificativa anterior o baixo custo. A tendência, então, é que se produza uma menor qualidade”, atesta.
#3. Militarização
A militarização, por sua vez, tem se colocado como alternativa do Estado para atuação nas escolas em zonas de alta vulnerabilidade social. Salomão reconhece que Goiás também apresentou ações concretas nessa perspectiva, mas sinaliza movimentos no Piauí e no Amazonas. “E não se trata das escolas militares previstas na Constituição, mas de repassar a gestão de escolas comuns para os militares sob o argumento de que essa é a política adequada para atuação do Estado na educação nas zonas de alta vulnerabilidade ou conflagradas, que têm índice de violência mais alto”, esclarece Salomão.
Porém, o especialista questiona essa proposta, problematizando os princípios básicos dessa concepção: disciplina e ordem. “Em que diretriz curricular da educação ou na Lei de Diretrizes e Bases (LBD) estão previstos esses princípios como pedagogicamente aceitáveis na realização do direito à educação? Não existe isso. É uma violação que fere o princípio básico da organização político-pedagógica das escolas”, critica, discutindo a importância da construção dialógica, e participação crítica e democrática da comunidade escolar nos processos educativos.
A relação que ele vê dessa agenda com as demais ameaças ao direito à educação, ainda que de maneira indireta, é que a militarização tem se colocado como alternativa conservadora às políticas afirmativas de intervenção do Estado em zonas de alta vulnerabilidade social, que por sua vez se baseiam na ideia de democratização de acesso dos bens educacionais e culturais. “A forma de enfrentamento a esse tipo de questão, construída nas políticas educacionais do país, tem sido oferecer uma escola de mais alto nível. Essa é a proposta mais antenada com a perspectiva do direito à educação. A política educacional deveria enfrentar essa questão oportunizando não só uma escola comum, mas uma que trouxesse os bens culturais para dentro da comunidade. Agora, isso requer uma atuação forte do Estado porque o que está em jogo é promover qualidade com equidade, o que, na prática significa gastar mais por aluno nas zonas mais pobres”, avalia.
Ximenes entende que a militarização, em certo sentido, é a antítese dessa ideia, justamente por pressupor escolas comuns nas quais se restringe o acesso a oportunidades de desenvolvimento do estudante e a liberdade acadêmica e pedagógica de professores e alunos, transferindo a demanda concreta da desigualdade para a lógica do controle militar. “Essas escolas inviabilizam qualquer discussão sobre educação integral no sentido de interação com a comunidade, com os equipamentos culturais e sociais, devido a uma proposta hierarquizada e autoritária. É a antítese da liberdade que se almeja nos princípios constitucionais do direito à educação. Como os estudantes vão colocar os seus anseios? Eles já são tolhidos de início quando entram na escola e batem continência, e não há qualquer espaço para a subjetividade”, condena.
Para Salomão essa ameaça pode ganhar força no cenário atual, sobretudo, em uma situação de crise econômica, e com ameaças a políticas sociais. “A tendência é que se tenha mais violência, mais conflitos sociais nas cidades. E isso virá para a escola, uma vez que ela não está descolada da sociedade”, indica.
Por fim, e não menos importante, o especialista entende ser flagrante a violação da proposta a dois princípios básicos do direito a educação. “Ele [o direito à educação] não pode ser visto somente como o dever do Estado de construir escolas e assegurar vagas. Tem uma parte desse direito que se constitui com a abstenção dos administradores estatais, legisladores e juízes na sua determinação direta, o que tem a ver com o direito das escolas construírem, com algum grau de autonomia, as suas propostas pedagógicas; e também com a liberdade de ensinar e aprender”, reflete.
Além de reconhecer a violação própria do Escola sem Partido, o especialista ainda vê confluência desta agenda com as demais elencadas. “O inimigo claro dessa proposta é o professor, com ataque à sua liberdade. O problema colocado então é sobre esse agente público independente que tem responsabilidade republicana e que, por essa mesma condição, deve ter liberdade acadêmica”, pondera.
Ximenes vê aí uma correlação com a dinâmica das privatizações. “O que o Escola Sem partido propõe é, de alguma forma, uma construção de um trabalho docente que seja determinado pelos interesses privados, em detrimento dos interesses públicos, ou seja, passa a determinar o conteúdo pedagógico o interesse privado das famílias e das comunidades, em detrimentos dos conteúdos públicos estabelecidos nas diretrizes e das escolhas pedagógicas das escolas e suas equipes”, reconhece.
A ameaça, a seu ver, está no controle ideológico sobre o trabalho dos professores. “Não se pode esvaziar o dever do Estado de oferecer para todas as crianças e adolescentes um núcleo básico de educação republicana, que passa pelos direitos fundamentais; negar isso implica em violar o direito das crianças e dos adolescentes”, esclarece Ximenes. “Uma parcela essencial desse direito a uma educação republicana, não privada, passa pela garantia de liberdade e pluralismo nas escolas. É impossível educar para a cidadania em um ambiente opressor e autoritário”, complementa.
Para ele, essa discussão busca condenar e/ou abster o Estado da responsabilidade e da necessidade de assegurar que as escolas tragam o pluralismo e a diversidade para o centro do debate educativo.
“A doutrinação, no sentido que esse projeto a coloca, já é vedada na Legislação. O que me parece é que o Escola Sem Partido propõe estabelecer uma limitação a priori sobre determinados temas e isso significa uma escola que vai se calar diante alguns aspectos ideológicos, ou seja, que vai promover ideologias”.
Ao que exemplifica: “por exemplo, uma escola que não apresenta as questões de gênero vai reproduzir as concepções que aquela criança ou adolescente traz da família ou da sua comunidade. Na verdade, esse projeto se apropria da ideologia, invertendo seu significado, porque o papel da escola é desconstruí-la não para doutrinar ninguém, mas para oferecer um referencial crítico para que as pessoas possam escolher as posições que tomarão na vida, inclusive levando em conta a família, a religião”, finaliza.