O debate sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é extenso e com a terceira versão sob análise do Conselho Nacional de Educação (CNE) é hora de refletir sobre as propostas do documento e quais os desafios a serem enfrentados com sua aprovação.
De saída, um dos pontos que mais chama a atenção é o desalinhamento entre os conceitos apresentados na Introdução com os elencados nos capítulos seguintes. Se o texto introdutório coloca os princípios da Educação Integral como centrais e constituintes da proposta formativa da BNCC, o mesmo não é encontrado nos próximos capítulos, que se mostram orientados por uma visão fragmentada do conhecimento e do desenvolvimento humano.
“A definição do que se vai aprender está estruturada de forma muito rígida. A Base olha ano a ano e isso dificulta o aprendizado, já que tende a achar que todas as crianças aprendem no mesmo ritmo e maneira. Isso é um grande equívoco”, comenta Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM Brasil.
A especialista refere-se à organização seriada proposta pela BNCC, que fragmenta o conhecimento em componentes curriculares.
Como consequência, o desenvolvimento integral do aluno é comprometido já que a interdisciplinaridade e transversalidade dos saberes não são favorecidas. “Não há justificativa científica para a opção seriada em relação ao ensino em cada uma das componentes”, comenta a socióloga Helena Singer.
No estudo “O desenvolvimento integral na Base Nacional Comum Curricular: Recomendações sobre a Terceira Versão em análise no CNE”, realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral com a co-coordenação de Helena, é apontado, por exemplo, a necessidade de haver uma articulação maior entre as dez competências gerais para a Educação Básica apresentadas na Introdução e as competências específicas das áreas de conhecimento e dos componentes curriculares do Ensino Fundamental.
“É preciso pensar como as competências, que são a materialização das ideias da Introdução, serão traduzidas em habilidades, trabalhando a concepção de Educação Integral no cotidiano”, aponta Anna Penido, diretora executiva do Instituto Inspirare.
Acredita-se também que há uma maior concentração das habilidades em competências gerais focadas no desenvolvimento intelectual e frágil em habilidades relacionadas ao desenvolvimento social, emocional, físico e cultural.
Para Anna, o desequilíbrio pode ser explicado pela dificuldade da BNCC de entender competências que envolvem repertório cultural, empatia, responsabilidade, cultura digital e projeto de vida, por exemplo, como curriculares.
Lógica disciplinar
Além disso, as competências específicas foram orientadas por lógicas próprias de cada área, dificultando o diálogo interdisciplinar. “Dentro desse conjunto que a Base chama de habilidades, percebemos que há muita coisa que não necessariamente é essencial ao aluno. O que de fato vai ajudar a promover as competências do desenvolvimento integral?” questiona Anna Penido.
Para Pilar Lacerda, a Base ainda deixa a desejar no sentido de fazer um debate aprofundado sobre o direito de aprender dentro de uma perspectiva da educação integral.
“Não se pode achar que definindo competências e conteúdos a questão da aprendizagem se resolve. Não se resolve e pode piorar. Quando falamos em direito de aprender, estamos dizendo que a escola, para uma política de equidade, deve reconhecer seus alunos, suas histórias, suas trajetórias”, diz.
Educação Infantil
O estudo apresentado pelo Centro de Referências em Educação Integral aponta que a maior fragilidade da BNCC em relação à Educação Infantil diz respeito à organização por faixas etárias mal definidas. Ao reduzir os campos de experiência a determinada idade, entende-se as crianças como um grupo homogêneo, o que não é positivo, já que compromete o desenvolvimento de linguagens e potências.
Por outro lado, Maria Thereza Marcilio, consultora fundadora da ONG Avante, acredita que a Base apresenta-se como uma proposta interessante por colocar a criança como eixo central da Educação Infantil. “Quando se fala em currículo, você pensa em disciplinas, conhecimento e o sujeito some, mas na Educação Integral o centro é a criança”, comenta
No entanto, essa visão de infância precisa ser acompanhada por uma redefinição na formação docente. “Houve uma mudança no entendimento de como a criança se desenvolve, mas não houve mudança na formação dos profissionais”, aponta Maria Thereza.
Além dessa necessidade de adequação, a especialista aponta dois pontos que merecem atenção sobre a forma como a Educação Infantil é tratada na BNCC. Na terceira versão do documento, a parte introdutória – antes densa e bem fundamentada – foi quase toda retirada com o argumento de que estava muito teórica, o que dificultaria o entendimento do professor.
Para Maria Thereza, o argumento é fraco e insuficiente, uma vez que o documento deve ser uma orientação para o município e não para o professor. “Apresentar uma fundamentação teórica é urgente quando se fala em Educação Infantil, porque isso não é apresentado na faculdade, não é algo vivenciado na formação”, aponta.
Outro ponto preocupante foi a mudança do campo de experiência ligado a múltiplas linguagens ser reduzido apenas à “oralidade e escrita”. Com a redução, a apresentação do conteúdo às crianças pode ser limitada. “Ao mudar o nome, você reduz e limita o próprio entendimento desse campo”.
Vale lembrar que as teorias mais contemporâneas sobre a primeira infância superam a visão desta etapa como de preparação, do devir, para considerá-la como um tempo em si, com sua identidade e finalidade próprias.
Implementação da BNCC
A forma como a BNCC será interpretada nos currículos e propostas pedagógicas também é uma preocupação. “A Base Nacional Comum Curricular não pode ser apenas uma proposta e um produto de prateleira. Ela precisa ser uma prática efetiva dentro das escolas”, aponta Pilar.
Para que a implementação aconteça de forma adequada à realidade da escola e dos alunos, Maria Thereza comenta sobre a importância de entender a BNCC como um documento orientador para o município, que será responsável por interpretar e transformar as propostas em currículo escolar. “A partir disso, as escolas devem pensar o projeto político pedagógico”, diz.
Desse modo, é preciso pensar sobre o que está sendo apresentado pela BNCC e como isso pode ser aplicado de forma coerente para que o desenvolvimento completo do aluno seja garantido. “É preciso mais coerência entre a educação integral e o que vem depois da Base”, finaliza Pilar.