Reportagens

Os estudantes que estão inspirando políticas públicas

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Crianças e adolescentes são produtoras de cultura e conhecimentos, e também podem contribuir para a construção de políticas públicas, seja por meio da escuta ativa do que pensam e desejam, como também a partir do do que efetivamente produzem, ou realizam.

Um exemplo desta colaboração reside nos projetos criados por estudantes que, até mesmo sem que soubessem, vão na direção da implementação das metas do Plano Nacional de Educação (PNE).

O PNE, que completou metade de sua vigência em 2019, teve avanços parciais em apenas 4 de suas 20 metas, e as perspectivas de que seja cumprido até o fim de 2024 se tornam cada vez mais distantes.

Ainda que a responsabilidade pelo cumprimento do PNE não seja dos alunos, olhar para a forma como eles estruturam e realizaram esses projetos pode fornecer pistas importantes sobre como criar e executar políticas de maneira significativa, contextualizada e democrática.

Educação inclusiva

Meta 4 – Universalizar, para a população de quatro a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.

Gabriel Santos tinha 11 anos quando chegou à Escola Municipal Dom Sílvio Maria Dário, em Itapeva (SP). Na tentativa de fazer amigos, se aproximou de Rafael Pereira, um menino da sua turma, e puxou assunto. “Eu tentava falar com ele, mas ele não me respondia”, conta.

Do outro lado, não era falta de vontade de conversar. Rafael, na verdade, é surdo e se viu imóvel diante da situação. Apesar de contar com uma intérprete de Libras que traduzia as aulas, a interação direta com os colegas ficava prejudicada.

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No recreio, comia sozinho. Durante o jogo de futebol, não conseguia acompanhar as estratégias que os amigos gritavam na quadra. “Nós percebemos que ele ficava muito sozinho, e queríamos que o Rafael participasse das coisas com a gente”, lembra Gabriel, agora com 14 anos.

Conversando com outras crianças da sala, que também manifestaram essa mesma preocupação, os estudantes começaram a pedir para a intérprete ensinar os sinais básicos. Aos poucos, a turma inteira foi se envolvendo. O sucesso foi tanto que pediram por um horário semanal específico para as aulas de Libras.

“Eu só tinha contato com o meu pai e a minha mãe. Fiquei feliz quando comecei a conversar mais com os meus amigos e professores”, conta Rafael.

Atualmente, a escola possui um curso de Libras permanente, após o horário de aula, em que qualquer aluno matriculado pode se inscrever. Eles também promovem peças de teatro e coral para a comunidade. A iniciativa venceu o Prêmio Criativos da Escola, em 2016, e agora já há outras unidades aderindo ao projeto iniciado por Gabriel e seus amigos.

“Antes, a gente entendia que éramos um tipo de pessoa e ele outro. Ter o Rafael mais próximo nos ensinou que ele é capaz de fazer tudo o que nós fazemos. E isso foi transformando nosso jeito de olhar para outros alunos, para a diversidade, e para incluir a todos. Depois disso tudo, sei que somos capazes de transformações para incluir cada vez mais pessoas”, afirma Gabriel.

Em 2017 chegou à escola Victor Hugo Rodrigues Alves, outro aluno surdo, que atesta o ambiente mais acolhedor. “Na minha escola anterior não era assim. Aqui eu consigo participar dos jogos e tenho muito mais interação com os estudantes e professores”, diz.

Alfabetização e analfabetismo funcional de jovens e adultos

Meta 9 – Erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional.

Foi em um ponto de ônibus que um grupo de estudantes viu de perto as dificuldades de quem não sabe ler. “Uma senhora perguntou para um moço qual era o ônibus vindo, e ele foi grosseiro”, conta Lívia dos Reis. Na época tinha 15 anos e ficou comovida com a cena. Junto a outros colegas, decidiram fazer algo para mudar essa realidade.

Após conduzirem uma pesquisa, descobriram que quase 60% das pessoas da comunidade onde viviam, em Andrequicé, em Três Marias (MG), não tinham terminado o Ensino Fundamental. E, destas, muitas eram analfabetas.

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“Eles diziam que era comum passarem por situações como essas e que, frequentemente, se sentiam constrangidos e dependentes. Então decidimos criar o projeto, porque eles têm esse direito, não depende da idade”, diz Lívia.

Com a ajuda de professores da Escola Estadual Carlos Alexandre de Oliveira, onde estudavam, os adolescentes deram início ao projeto Ensinando e Aprendendo. Três vezes por semana, durante uma hora, iam à casa de pessoas da comunidade para ensiná-los a ler e a escrever.

A turma durante uma das aulas. Crédito: Arquivo pessoal/Lívia dos Reis

O projeto, que ocorreu nos anos de 2016 e 2017, com a atuação de cinco alunos, conseguiu promover avanços significativos na alfabetização de 15 pessoas. “Eu nunca vou me esquecer da alegria que eu senti, e da pessoa, quando aprendia a escrever o próprio nome”, rememora a jovem.

Em 2018, o grupo se desfez. Alguns foram morar em outra cidade, e as atribulações do Ensino Médio fizeram com que tivessem menos tempo para se dedicarem a iniciativa. Hoje, aos 18 anos, Lívia está terminando o ensino básico e já tem planos para retomar o projeto. Em breve ela conduzirá uma formação para instigar outros estudantes a ensinarem outras pessoas.

“Me incomoda deixar o projeto parado porque vi o bem que fez quando compartilhamos o pouquinho que sabíamos, e quanto nós aprendemos com eles. Também já estou desenvolvendo um projeto para cobrar do poder público que aqui tenha oferta de EJA.”

Gestão democrática 

Meta 19 – Garantir, em leis específicas aprovadas no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a efetivação da gestão democrática na educação básica e superior pública, informada pela prevalência de decisões colegiadas nos órgãos dos sistemas de ensino e nas instituições de educação, e forma de acesso às funções de direção que conjuguem mérito e desempenho à participação das comunidades escolar e acadêmica, observada a autonomia federativa e das universidades.

“O grêmio permite incluir os alunos nos processos de decisão, o que faz com que a gente exercite nossa cidadania, que se reflete na sociedade. Isso importa porque a escola deve formar os indivíduos por completo, não só na parte teórica”, afirma a aluna de 3º ano do Ensino Médio, Débora Nascimento, 18 anos.

Essa foi a compreensão que levou a estudante e seus colegas a decidirem implementar um grêmio onde estudam, no Colégio Dom Eugênio Salles, localizado na Cidade de Deus (RJ).

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O grupo ganhou força quando conheceram, em um Cursinho Popular da região, Salvino Oliveira Barbosa, 21 anos, que estuda Gestão Pública na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Barbosa estava, por acaso, desenvolvendo um projeto que deveria incidir em uma escola do Ensino Médio.

“Ter espaço de debate na Cidade de Deus cria um sentimento de pertencimento ao lugar. E isso é importante, porque só se é capaz de preservar aquilo que se entende como seu. A atuação do grêmio aumentou a conexão com o bairro, as famílias e a comunidade. E tudo isso precisa estar conectado para melhorar a qualidade da educação”, diz Salvino.

Dentre as atividades que o grêmio já desenvolveu está a parceria com o posto de saúde, e a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) para reformar praças da Cidade de Deus, com instalação de bibliotecas comunitárias, a realização de cine-debates, e a construção de uma horta comunitária na parte externa do colégio.

“Queremos articular escola e território, trazer novos projetos culturais, e as demandas da nossa comunidade. Por tudo isso, e pelo que ela representa, nomeamos nosso grêmio de Marielle Franco”, conta Débora.

Participação itinerante

Em outra parte do Rio de Janeiro, em Campo Grande, cinco jovens se mobilizaram com um intuito parecido, e fundaram a Caravana Itinerante da Juventude, conhecida como CIJoga

O projeto busca estimular a participação política e social de jovens, e consiste em ouvir os estudantes sobre questões relacionadas à escola e à comunidade e, depois, construir coletivamente soluções para os problemas apresentados, também propondo parcerias com o poder público e o terceiro setor

“Nós procuramos mostrar que eles vivem política pública, que ela não é algo distante. Também temos muito claro que nós não vamos dar voz a ninguém. Eles têm voz, só mostramos que eles podem e sabem falar”, explica Gelson Henrique Silva da Silva, 20 anos, estudante da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e um dos integrantes da CIJoga. 

Gelson também afirma que essa maneira coletiva de debater e construir é crucial. Do contrário, “seria mais do mesmo, como já são feitas e implementadas boa parte das políticas públicas no país” — sem ouvir os jovens.

“Os jovens sabem o que querem e têm interesse por política e por atuar, seja na escola ou na comunidade. E dentro do ambiente escolar, especificamente, essa participação dos estudantes ajuda a combater a evasão e a melhorar as relações, porque a escola passa a fazer mais sentido para eles, e professores, alunos e diretores conseguem construir caminhos coletivamente”, diz Gelson.

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