Diversificar os currículos é um desafio a ser enfrentado para a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a BNCC é responsável por listar as aprendizagens essenciais, mas deve “ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educando”. Mas como fazer isso?
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Durante a tramitação da BNCC, muito se falou que, na elaboração dos currículos, o documento nacional deveria representar 60% do total de aprendizagens e os outros 40% deveriam ser complementados com os aspectos definidos por cada localidade. Para Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz, não se trata apenas disso. “Na nossa concepção de educação integral, não nos referimos à diversificação como inserção de novos temas ou habilidades, mas como a uma contextualização do ensino”, afirma.
No componente curricular de Língua Inglesa, a articulação dos conteúdos ao território onde os educandos vivem é um elemento essencial para garantir sentido à aprendizagem. Segundo o estudo Ensino de Inglês da Educação Pública Brasileira, publicado pelo British Council, 41% dos professores listam como um de seus maiores desafios o fato dos alunos não considerarem o inglês relevante e 33% afirmam que o idioma não faz parte da realidade de seus alunos. “Há uma tradição histórica de se tratar o inglês do ponto de vista da gramática e da tradução, desvinculando-o do uso, e isso precisa ser alterado com as novas diretrizes”, afirma Andreia Alves, professora da Escola da Vila, na capital paulista, e consultora no ensino da disciplina.
O novo documento prega um ensino da língua para situações reais e em uma perspectiva intercultural, ou seja, reforça a importância do Inglês para que as pessoas de diferentes partes do mundo possam se comunicar e estabelecer relações de trocas culturais e de conhecimento.
Cultura local em cena
Na zona rural da cidade de Manaus, a professora Andreza Lago trabalha com estudantes de diferentes origens nas turmas de 6º ao 9º ano: moradores de comunidades ribeirinhas, indígenas e jovens estrangeiros de países vizinhos. Além do contexto multicultural das salas, vários estudantes traziam ainda como demanda a necessidade de se comunicar com os turistas. “Muitos alunos precisam vender os artesanatos produzidos por eles e suas famílias”, conta a professora. Assim, estas situações corriqueiras passaram a figurar nas aulas.
A contextualização com o território também aparece nas adaptações necessárias para aproximar o material didático do cotidiano dos alunos. “Os livros que recebemos são normalmente escritos no Sudeste e, além de haver elementos distantes dos estudantes, não contemplam os aspectos locais”, conta a professora. Exemplo disso é a ausência de menção a frutas como o cupuaçu e o açaí, presentes na alimentação das crianças.
Esta complementação, hoje, se dá em sala de aula por meio de pesquisas e reflexões que convidam os estudantes a falar sobre a própria realidade. Esse movimento também os ajuda a entender como pessoas de outras partes do país e do mundo veem o ambiente onde esses alunos moram.
A professora Andreza, por exemplo, propôs que seus alunos do Fundamental 2 pensassem sobre as lendas amazônicas em Inglês. Durante a pesquisa, ela e os estudantes encontraram uma quantidade grande de materiais no outro idioma. “Ficamos muito surpresos”, conta ela. Notar o interesse internacional pelas histórias que fizeram parte da infância dos jovens fez com que valorizassem ainda mais essas narrativas. “Eles também se surpreenderam muito ao ouvir, em vídeos estrangeiros, a maneira como pronunciavam palavras de origem indígena”, lembra a professora.
Mergulho na comunidade
Começar este trabalho tendo em vista a estruturação curricular, no entanto, pode não parecer muito simples. “O primeiro aspecto que levantamos em nossas reflexões sobre o currículo foi: quem são nossos alunos?”, conta Luciana Cury, pedagoga, então à frente da superintendência de Educação no município de Araçariguama, no interior de São Paulo. A questão levantada pela rede foi fundamental para garantir que a adequação do documento curricular ao território fosse realizada. “Essa articulação não trata apenas dos aspectos culturais, mas de promover uma aprendizagem significativa, que dialoga com os interesses e as questões pelas quais os estudantes estão passando”, reitera Natacha.
Esse diagnóstico passa por aspectos da geografia local, que devem ser abordados durante a reformulação dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) das escolas, como a realidade socioeconômica dos estudantes, as oportunidades de aprendizagem que possuem fora da escola e a disponibilidade de recursos culturais propiciados na região pelo poder público e pelas famílias. Mas deve ir além. “Não devemos olhar apenas para as vulnerabilidades, mas conhecer também os comportamentos da comunidade, os códigos estabelecidos entre as pessoas, assim como as rotinas e os interesses”, afirma Natacha.
Em Araçariguama, a aposta no potencial dos alunos se tornou um fator importante. “Identificamos que, por virem de uma cidade pequena, eles têm pouca ambição acadêmica. Queremos, na formulação do currículo, pensar em como resolver essa questão”, diz a superintendente de Educação do município. “E a língua inglesa deve aparecer como peça chave para criar estas novas oportunidades”, completa.