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Pioneira, Diadema (SP) promove antirracismo e proteção social nas escolas

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Com histórico de lutas sociais, município educa para as relações étnico-raciais de forma permanente e colhe frutos da mobilização antirracista no cotidiano escolar. 
Por: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena

🗒️ Resumo: A cidade de Diadema (SP) mobiliza o combate ao racismo nas escolas de forma atrelada ao sistema de garantia de direitos, a fim de construir uma Educação e uma sociedade de paz. Conheça o trabalho pioneiro da rede, que instituiu a Educação para as relações étnico-raciais de forma permanente para 11,6 mil crianças em todas as 18 unidades escolares.
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Quem circulasse pelas escolas de Diadema (SP) alguns anos atrás e hoje, notaria mudanças acontecendo bem diante de seus olhos. Se antes era capuz, boné e cabelo alisado por toda parte, hoje os black powers, tranças e crespos adornados se fazem vistos e admirados. Quando uma criança pede um lápis cor de pele, ela já espera poder escolher entre várias tonalidades. 

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A capacidade de identificar situações racistas e de defender a si e aos outros também foi ampliada, assim como mudou a autodeclaração racial das crianças. Além dos relatos das educadoras, um levantamento a partir do projeto Adolescente Aprendiz, fruto de uma parceria entre as redes municipal e estadual, dá algumas pistas: após 10 meses de trabalho com as relações étnico-raciais, o número entre 800 estudantes que se declaravam pretos ou pardos saltou de 39% para 67%.

A Educação antirracista na rede também é uma forma de promover a cultura de paz e combater os discursos de ódio, na medida em que se ensina a valorizar e respeitar as múltiplas diversidades humanas – tão necessário no contexto de agravamento dos ataques extremos às escolas brasileiras. 

Outras ações, como os grêmios estudantis, presentes em todas as unidades, ajudam a fortalecer a participação dos estudantes no enfrentamento ao racismo. Aos 9 anos e estudante do 4º ano da rede municipal, Malcolm compartilha que já foi vítima de discriminações na escola e se juntou ao grêmio para garantir que mais nenhuma criança passe por isso. “Todas as crianças na escola são diferentes e todas elas são importantes”, afirma. 

As palavras “negro” e “preto”, que antes eram utilizadas em tom pejorativo, agora pipocam nas conversas das crianças com naturalidade e orgulho, segundo relato das educadoras da rede. Para elas, as palavras importam muito. As famílias trazem relatos de terem sido corrigidas pelas crianças, por exemplo, ao utilizarem o termo “índio” no lugar de “indígena”, acompanhados de uma explicação da concepção que cada palavra carrega. 

“Prô, a gente precisa falar com você urgente. Aconteceu racismo aqui na sala”, disseram as crianças do 4º ano para a professora Cláudia Silva. Reunida, a turma conversou sobre o ocorrido. “Soube que quem defendeu a vítima nesse caso foi um menino que se declarou branco. É interessante perceber que eles já sabem que é uma luta de todos”, afirma a educadora. 

A mudança está, ainda, no brilho que surge na criança que ouviu pela primeira vez em sala de aula uma música que dizia “Epa Babá” e teve a oportunidade de compartilhar com os colegas, interessados e respeitosos, o que significa a saudação a Oxalá e a língua Yorùbá. 

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Quem conta essas histórias são as professoras do Programa Diadema de Dandara e Piatã. Aprovada em 2021 em lei pelo Plano Municipal Decenal de Promoção da Igualdade Racial, a iniciativa é pioneira no Brasil. “Diadema é a única cidade do Brasil que tem um programa dessa natureza implementado na rotina escolar de forma permanente”, aponta Ana Lucia Sanches, Secretária de Educação do município.

As 18 escolas de Ensino Fundamental da rede, que atendem 11,6 mil estudantes, têm uma hora semanal de atividades dedicadas à Educação das relações étnico-raciais. 

As leis 10.639/03 e 11.645/08 instituíram a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena em todas as escolas do Brasil, ao longo de toda a Educação Básica.

Conduzido por 18 professoras efetivas e especializadas, que recebem formação pela Secretaria de Educação e planejam as atividades em conjunto, o programa é uma forma de garantir os direitos dos estudantes e implementar as leis 10.639/03 e 11.645/08 em atividades semanais desde já, enquanto progressivamente a Educação para as relações étnico-raciais se transversaliza para todas as áreas do conhecimento e dimensões da escola. 

Histórias, brincadeiras e vivências indígenas e africanas fazem parte do Programa Diadema de Dandara e Piatã. Crédito: Pedro Roque/Prefeitura de Diadema

“É um meio de garantir que todas as crianças tenham acesso à diversidade de culturas e histórias que formam o nosso país, independentemente da vontade individual de professores, que podem ter mais ou menos afinidade com o tema”, explica Evelyn Cristina Daniel, uma das coordenadoras do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (Nerer), da Secretaria de Educação de Diadema.

A preocupação e urgência também tem a ver com o fato de que, há mais de 20 anos, 70% das Secretarias Municipais de Educação do Brasil não realizaram nenhuma ação ou poucas ações para implementar a lei 10.639/03. Os dados são do estudo do Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher Negra.  

Na prática, a expansão da Educação decolonial e antirracista na rede começa por estas 18 professoras(es) que passam a formar as demais professoras(es), coordenadoras(es) pedagógicos e gestoras(es) das unidades em que atuam, bem como de outras etapas e modalidades. O objetivo do programa é chegar a todas as 19,8 mil crianças e 61 unidades da Educação Infantil aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos.

Para apoiar o trabalho das professoras do Programa e incentivar as demais a utilizá-los, cada escola também recebeu um grande baú com os “Tesouros de Dandara e Piatã”. Ele contém materiais pedagógicos como bonecas racialmente diversas, com deficiência, livros, jogos, instrumentos musicais, tecidos com estampas africanas, símbolos Adinkra, mapas do continente africano e do Brasil indígena. 

As atividades musicais, em roda, a contação de histórias e brincadeiras africanas e indígenas compõem algumas das experiências proporcionadas às crianças, que são incentivadas a trazerem seus interesses e curiosidades para a conversa. 

“Temos a Mancala, que exige raciocínio lógico e as crianças conversam sobre sua origem. Também há muitos jogos que incentivam a cooperação, ao invés da competitividade, bastante típica em brincadeiras ocidentais”, explica Vivian Viegas, coordenadora do Diadema de Dandara e Piatã. 

Para Evelyn, essas ondas de transformação que se propagam pela cidade têm o potencial de sensibilizar quem ainda não participa dessas reflexões. “As escolas são microcosmos sociais. Elas refletem o que acontece na sociedade, mas também levam coisas daqui para lá. Como aqui o combate ao racismo começa pela escola, acredito que daqui a dez anos vamos ter uma sociedade de Diadema toda diferente”, projeta Evelyn.

A importância da formação docente

No cotidiano do trabalho com as escolas e demais profissionais, as educadoras de Dandara e Piatã encontram entraves. Elas relatam casos de dificultar o acesso aos materiais pedagógicos, comentários sobre as atividades em tom de menosprezo e outras formas mais sutis e indiretas de não apoiar ou dificultar o trabalho.

Com as famílias, o cenário se repete. Já houve quem proibisse o filho de participar das aulas e receber bilhetes reclamando das atividades não é incomum. A principal questão que aparece é uma confusão entre doutrinação religiosa e a Educação para as relações étnico-raciais, que celebra as diversidades e promove o convívio de forma respeitosa em meio a elas.

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Casos como esse são frequentes e, para lidar com essas situações e seguir pesquisando o tema e trocando experiências, as professoras do Programa recebem formações coletivas e semanais. “Eu costumo dizer que aqui é um aquilombamento”, define Vivian.

“Nós somos um quilombo porque não visamos o benefício próprio. Um ajuda o outro, compartilha informações e conhecimentos, acolhe quando alguém sofre alguma coisa. A gente se cuida um pouco todo dia”, diz a professora Luciana Oliveira.

Dandara e Piatã: de onde vem o nome do Programa? Dandara, liderança do Quilombo dos Palmares, comandou o exército palmarino e é um dos maiores símbolos da resistência negra no Brasil. Já Piatã é um nome de origem Tupi que significa “homem forte”. 

Fortalecidas e amparadas, retornam às unidades para explicar melhor do que se trata o trabalho e sua importância. O caminho do diálogo, até agora, tem se mostrado eficiente para formar também os adultos. “É uma mudança que não é só incluir uma atividade antirracista na aula. Depende de mudar como eu vejo as crianças, as minhas falas e atitudes inclusive fora da sala de aula. Vai mudando até a compreensão sobre o país, de entender a desigualdade e violências nessa chave racial”, explica Vivian.

Ao mesmo tempo, a especialista observa que cai por terra uma falácia que sustenta as estruturas racistas: a de que somos todos iguais. “Sem dúvida somos todos iguais em relação a direitos e deveres. Mas somos todos completamente diferentes e a boniteza, como dizia Paulo Freire, está nisso”, diz Vivian.

Retomando a obra Tornar-se Negro, da psicanalista Neusa Santos Souza, o professor Roberto Larrubia resume a potência da Educação antirracista: “A autora afirma que uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Eu acredito que é esse nosso trabalho aqui. Damos a possibilidade às crianças, e até a nós mesmos, de construirmos novos discursos sobre nós e, juntas e juntes e juntos, também de alcançar uma sociedade mais justa”.

Enfrentar o racismo também passa por garantir direitos e ouvir as crianças

Na rede municipal, discussões sobre cultura de paz estão articuladas com o combate ao racismo e a escuta das crianças. Crédito: Prefeitura de Diadema

No contexto dos ataques extremos às escolas no início de 2023, a rede municipal de Educação de Diadema (SP) voltou a atenção para suas escolas e territórios mais uma vez para se perguntar como e quais violências atravessam esses espaços e pessoas. 

O diagnóstico apontou para a necessidade de seguir pelo caminho que a rede já vem trilhando para promover a cultura de paz: interromper ciclos de violações de direitos das crianças, adolescentes e suas famílias, combater o racismo e decolonizar a Educação. 

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“Não é possível falar de cultura de paz sem combater o racismo. É condição imprescindível para a cultura de paz o enfrentamento das desigualdades raciais, sociais e demais violações de direitos, com projetos, programas e políticas públicas”, afirma Ana Lucia Sanches, Secretária de Educação.

Desde 2021, opera na cidade outro programa aliado ao Diadema de Dandara e Piatã, o Escola que Protege. Ele mobiliza a rede de proteção integral e forma as equipes escolares para identificar, acolher e encaminhar casos de violações de direitos. No ano passado, foram 800 atendimentos, a maioria envolvendo trabalho infantil, violência doméstica e abuso sexual, bem como questões com alimentação e moradia. 

Todos eles tinham em comum a baixa frequência nas aulas e, por isso, as escolas tornaram o controle de faltas mais rigoroso, com acompanhamento e busca ativa dos estudantes que faltam às aulas. Só este ano, também já foram realizadas 68 reuniões com as famílias sobre direitos humanos e comunicação não violenta.

Vista aérea de Diadema: cidade com histórico de lutas sociais e movimentos sindicais e a segunda maior densidade demográfica do Brasil. Crédito: Prefeitura de Diadema

O contexto de Diadema. Situada na região metropolitana da capital paulista, Diadema tem a segunda maior densidade demográfica do país, de acordo com o Censo 2022, 49% da população com renda inferior a 2 mil reais por mês e um histórico de lutas sociais e movimentos sindicais. A rede municipal conta com quase 8,2 mil crianças matriculadas na Educação Infantil e 11,6 mil estudantes matriculados nos anos iniciais do Ensino Fundamental. 

Em 2023, surge outro programa para somar às ações, o Observatório de Segurança Escolar, que cria soluções locais, comunitárias e intersetoriais para proteger escolas e territórios. Já foram realizadas 255 visitas domiciliares para análise de casos de violência doméstica e busca ativa, 17 formações com professores e 140 reuniões com a Rede de Serviços de outras secretarias. Em conjunto, qualificam e aprofundam as discussões sobre segurança escolar e cultura de paz.

Política na prática: Por meio do Conselho e Grêmio dos Curumins, as crianças participam de reuniões periódicas com o prefeito, a secretária de Educação e outras autoridades. Crédito: Igor Andrade Cotrim/Prefeitura de Diadema

A participação ativa das crianças também é central, desde a Educação Infantil. Além de todas elas serem ouvidas durante a construção do PPP de sua escola, por meio do Conselho e do Grêmio dos Curumins, que elege representantes de cada escola, as crianças participam de reuniões periódicas com o prefeito e a secretária de Educação para levar suas demandas e soluções. 

“Eu quis participar porque ia melhorar a escola e também por diversão”, conta Ana Júlia, 11 anos, que está no 5o ano. “Já trabalhamos com as turmas a questão de brigas e palavras feias. As próximas ações vão ser para parar o racismo e o bullying, jogar o lixo no lugar certo e não ter mais desperdício de comida e água”, diz.

Os Curumins também são formados para combater discriminações e promover a cultura de paz, levando esses conhecimentos para seus colegas em formações nas escolas, e para toda a sociedade, por meio dos podcasts que gravam periodicamente.

O estudante Malcolm também compartilha que seu lema, enquanto curumim, é “o diálogo é o melhor caminho”, e o que deseja que a escola seja: “Penso em uma escola com paz, harmonia e boas atitudes, onde tem amor e respeito e as crianças são felizes”. 

Para Bete Marques, Coordenadora do Núcleo de Conselhos da Secretaria Municipal de Educação de Diadema, envolver as crianças nas construções cotidianas da escola é essencial para garantir a qualidade da Educação e uma formação cidadã. 

“A escola não é do gestor, nem dos professores. É das crianças. Então elas precisam dizer o que querem e participar das decisões, assim elas não vão aceitar o que não for bom para elas na escola, no bairro, daqui até a vida adulta”, diz Bete.

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