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Com antirracismo, GET Dorcelina Gomes da Costa enfrenta desafio da violência no território 

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Central e permanente, trabalho com antirracismo é ferramenta para acolher a potência e enfrentar os desafios presentes no cotidiano escolar. 
Por: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena | Fotos e vídeo: Matheus de Araújo

🗒️ Resumo: O Ginásio Educacional Tecnológico (GET) Dorcelina Gomes da Costa, em Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ), encara a dura realidade de lidar com operações policiais no território – que já vitimaram um de seus estudantes em 2023 – mas desde 2019 a escola nunca mais fechou suas portas, a fim de garantir os direitos de todas e todos os estudantes, graças à parceria com as famílias e à adesão da escola a protocolos elaborados pela Cruz Vermelha e pela Secretaria Municipal de Educação. Confira a trajetória de Dorcelina em repensar todas as suas dimensões para combater o racismo e promover a paz.
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Desde 2019, o Ginásio Educacional Tecnológico (GET) Dorcelina Gomes da Costa, em Cidade de Deus, nunca mais fechou as portas em dia de operações policiais, que obrigam escolas do Rio de Janeiro (RJ) a perderem até 20 dias letivos no ano. Território de resistência, a escola recebe os estudantes que conseguem chegar – uma forma de garantir os direitos à Educação e à alimentação – mas também uma ação simbólica de cultivar a paz e não deixar a potência dos(as) estudantes se apagar diante das violências.

Os desafios existem, mas a articulação e o trabalho das educadoras tentam mostrar que a vulnerabilização histórica é apenas uma parte do retrato do território e da escola. Incompleto, o recorte não permite vislumbrar toda a vitalidade presente na escola e na Cidade de Deus. 

Sobre o GET. A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (RJ) começou a implementar em 2022 os Ginásios Educacionais Tecnológicos (GETs), escolas que ensinam a partir da abordagem STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte e Matemática, aprendizagem baseada em projetos, atividades mão na massa e de recursos que desenvolvem a cultura digital e o pensamento computacional.

Hoje, Dorcelina é referência em combate ao racismo. Os laços da gestão escolar com as famílias são estreitos e estratégicos. Seus ambientes acolhem os meninos e meninas com dignidade. E o final do ano é marcado por um Show de Talentos conduzido pelas(os) estudantes, em que a alegria e a criatividade das turmas tomam conta de Dorcelina.

Grupo de trancistas da escola prepara as colegas para o Show de Talentos. Crédito: Matheus de Araújo

Mas a realidade da escola nem sempre foi assim. Até cerca de cinco anos atrás, estavam reproduzidos no interior do GET Dorcelina Gomes da Costa a aridez dos indicadores sociais do bairro – localizado entre os mais críticos da capital carioca. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Cidade de Deus, em 2010, o dado mais recente, era de 0,751, o 113º colocado entre 126 regiões analisadas pelo Instituto Pereira Passos no município do Rio de Janeiro. 

Fome, desemprego, abusos e negligências marcavam as famílias e estudantes. Brigas entre os adolescentes, bem como automutilações, faziam parte do cotidiano. A situação era tão crítica que a escola fechou turmas e foi se esvaziando. 

Ainda que nesse difícil contexto, a semente do que Dorcelina viria a se tornar já estava presente, na figura de professoras(es) empenhadas(os) em oferecer uma educação de qualidade e com sentido para aquelas(es) estudantes.

Sobre o GET Dorcelina Gomes da Costa. Com 23 professores, hoje a escola atende 470 adolescentes entre 11 e 15 anos, matriculados em turmas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental em tempo integral. O GET conta ainda com duas turmas de correção de fluxo escolar, ação desenvolvida pela Secretaria de Educação para reduzir progressivamente a distorção idade/ano por meio de propostas pedagógicas diferenciadas.

Sandra Barbosa, que é professora de História e assumiu a gestão em 2014, criou o Projeto Kizomba, em que todas as áreas do conhecimento trabalhavam algum aspecto da cultura negra. Conversas sobre racismo também se intensificaram no cotidiano escolar, encarando o problema estrutural de frente. 

“Tento mostrar que o que eles vivem acontece com muitas pessoas, porque ajuda eles a entenderem que não tem nada de errado com eles, é um problema da nossa sociedade”, explica Sandra. 

Em 2016, Dorcelina viu 81 estudantes deixarem a escola. Este ano, um estudante parou os estudos. Na escola, agora há fila de espera para matrícula.

Estava aberto o caminho. Em 2018, Verônica Lima se torna gestora da unidade e, em parceria com a coordenadora pedagógica Elisabete Madureira e a equipe docente, ampliam esse trabalho a ponto de reverter as taxas de exclusão escolar e de sobra de vagas, bem como o clima da escola. Junto às famílias e estudantes, repensaram todos os aspectos da Educação e hoje se consolidaram enquanto uma escola antirracista.

“Sou professora na escola desde 1995 e vejo muitas mudanças. Hoje eles sabem identificar o racismo, sabem que é crime e que podem denunciar. Sabem que eles têm tanto direito quanto todo mundo. E vejo também muitas mudanças nas atitudes e convivência. É claro que ainda tem conflitos, isso é natural, mas não é mais na mesma proporção de antes”, observa Sandra.

O Show de Talentos celebra a vida e a criatividade dos estudantes. Crédito: Matheus de Araújo

Para avançar na proteção social dos estudantes, mudar a forma de conceber o papel de funcionárias(os), como faxineiras e merendeiras, também foi essencial. Educadoras(es) que são, participam de todas as reuniões e decisões da escola e, pela proximidade com as(os) estudantes, costumam ser as primeiras pessoas a quem recorrem quando estão angustiados ou precisam de ajuda – o primeiro passo para poder acionar a rede de garantia de direitos. 

A primeira merendeira da escola, inclusive, é quem a batizou. “Quando eu entrei em 2016, conheci a Marli, filha da Dorcelina, que também foi merendeira aqui”, relata Monique Jesus. “Costumo dizer que a cozinha é o coração da escola, porque a criança não vem aqui só para estudar, vem para comer também. E a nossa ligação é muito forte, porque eu também sou da comunidade, então a gente brinca, conversa, mas também briga quando precisa”, diz Monique.

O ambiente acolhedor não é um detalhe

Paredes escuras, com pedidos de socorro rabiscados, livros empilhados até o teto pelos corredores, salas trancadas a cadeado, carteiras e banheiros depredados. Esse era o cenário em que conviviam os estudantes do Ensino Fundamental. 

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A primeira mudança foi passar a atender apenas os Anos Finais em tempo integral. “Com mais tempo, temos mais oportunidades de acompanhar cada um e promover seu desenvolvimento integral”, explica Verônica.

Em seguida, pintaram paredes, arrumaram trincos, portas e cadeiras. O banheiro feminino ganhou uma caixa de absorventes, sempre reabastecida. O masculino, espelhos. “Faz toda diferença que eles também possam se ver”, afirma Elisabete.

Os cadeados das portas também foram removidos, em uma perspectiva de reforçar para os estudantes que eles são dignos de confiança. “Compramos pufes para criar um ambiente agradável para eles estarem nos momentos de intervalo e houve quem dissesse que eles iam estragar, que não iam cuidar. Mas eles estão aí até hoje”, comemora Elisabete, que destaca: “São pequenas mudanças que vão fazendo a diferença para os estudantes, para o prazer de estar aqui e para a dignidade e respeito que eles merecem receber”. 

A mesa de ping-ping da escola diverte as turmas nos intervalos. Crédito: Matheus de Araújo

A pedagoga também reforça que o GET recebe apoio da Secretaria Municipal de Educação (SME) e da Coordenadoria Regional de Educação (CRE) para dar condições de trabalho e melhorar a infraestrutura, o que foi determinante para que pudessem realizar todas essas ações. “Temos autonomia para escolher as temáticas que vamos trabalhar e temos pessoas acima de nós que acreditam e potencializam nossas ações”, diz Elisabete.

Construindo uma nova relação com as famílias e o território

No lugar de contatos burocráticos para entrega de boletim, a escola começou a se mostrar interessada no que as famílias e a comunidade tinham a dizer. Aos poucos, foram cultivando sua participação nas decisões e cuidados com a escola.

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“Esses encontros servem para ouvir a comunidade e saber o que eles precisam que essa escola seja. As famílias têm que entender que esse espaço é delas e que não podem aceitar nada que não tenha qualidade. Então quando outro gestor entrar aqui, eles vão poder cobrar que a escola continue funcionando como desejam”, afirma Verônica.

As famílias agora são convidadas para comemorações e reuniões que mostram as conquistas dos estudantes e evidenciam o trabalho pedagógico. “Não chamamos a família para reclamar, mas para entender por que esse adolescente está assim”, explica Elisabete. O que costumam descobrir por trás de desinteresse ou agressividade são violações de direitos, que pedem da escola constante articulação intersetorial com o sistema de garantia de direitos. 

Fogo cruzado

As frequentes ações policiais no território também demandam a proximidade com as famílias. De acordo com a SME, só no primeiro semestre de 2023 já foram registrados na cidade mais fechamentos de escolas por causa de confrontos armados do que em todo o ano anterior. Foram 2.129 casos este ano, em comparação com com os 1.078 fechamentos em 2022, um aumento de 97,5%.

A letalidade da guerra às drogas. A plataforma Futuro Exterminado, do Instituto Fogo Cruzado, contabiliza ao menos 625 crianças e adolescentes baleados nos últimos sete anos em toda a Grande Rio. Desse total, 47,5% foram atingidos em ações policiais.

Quando acontece uma ação policial em Cidade de Deus, quase metade dos estudantes costuma não conseguir chegar à escola. Para lidar com o contexto, a escola aderiu ao Acesso Mais Seguro, programa da SME e Cruz Vermelha que segue os mesmos protocolos de escolas em países em guerra. 

A partir de uma formação com a Cruz Vermelha, cada escola criou seu próprio plano de ação. Na Dorcelina, quando acontece uma operação, a troca de mensagens de WhatsApp entre a coordenadora pedagógica e as famílias se intensifica antes das crianças saírem de casa. A ocorrência de tiroteios, proximidade dos tanques e veículos policiais, quantidade de pessoas andando nas ruas próximas às casas e escola – tudo isso entra na avaliação de risco. “Na saída, se tiver confronto, eu não libero ninguém”, explica Verônica. 

Desde 2019, a escola nunca mais fechou em dia de operação policial, uma forma de garantir o direito à Educação e à alimentação dos que conseguem chegar. “Também é um espaço mais seguro do que a criança ficar sozinha, porque sempre entram nas casas”, reforça a gestora escolar, que também vem apoiando unidades próximas a permanecerem abertas por meio deste mesmo protocolo.

Os esforços da escola em proteger as(os) adolescentes e famílias são amplos e permanentes, mas esse é um trabalho que nenhuma escola pode realizar sozinha, porque depende dos demais setores do Estado para fazer valer os direitos das(os) estudantes. 

No dia 7 de agosto de 2023, a escola amanheceu em luto. O estudante Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, havia sido assassinado durante uma operação policial. “Ele estava aqui desde o ano passado e sempre foi muito querido por todos”, relembra Verônica. Seus amigos, professores e membros da gestão compareceram ao velório e se colocaram à disposição da família. 

Durante a semana, que teve a programação alterada, assistentes sociais e psicólogos foram à unidade promover rodas de conversa. Um grupo de teatro também levou arte enquanto ferramenta de acolhimento e elaboração. 

Sem ação policial perto de escolas.

Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), conhecida como ADPF das Favelas, restringe operações policiais perto de escolas, creches e unidades de saúde. Em 2020, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro também pediu a proibição de operações policiais perto de escolas, com multa prevista em R$ 1 mil por dia de aula perdido na rede pública.

As turmas produziram cartazes para expressar sua revolta e escreveram poesias, que foram lidas em voz alta para todos. Sua turma também criou na sala de aula pequenos rituais de despedida e homenagem ao amigo Thiago. 

Dois meses depois, a escola também recebeu a mãe de Thiago para um café da tarde. “Nós e outras mães queriam estar presentes para ela e abraçá-la. Então a recebemos quando ela estava pronta para isso”. Em 7 de novembro, uma manifestação também marcou três meses da tragédia e pediu por justiça e paz. Nos cartazes, liam-se “Thiaguinho Vive” e “Paz para nossas crianças”.

Celebrar os adolescentes e seus talentos

Nos corredores, nos cantos do saguão de entrada, estudantes recolhidos e quietos. Cabisbaixos e tímidos, a dificuldade em apresentar trabalhos em frente à turma era geral. “Era uma questão muito forte de autoestima”, avalia Elisabete. 

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Para transformar o cenário, começaram por um trabalho com a equipe docente para criar um currículo e avaliações mais próximos dos adolescentes e de seus interesses e demandas, personalizando o ensino. Ainda, na sensibilização por uma escuta desses estudantes e na forma de dialogar. “Os alunos podem questionar e interferir. Eles têm voz, só precisam ser escutados por nós”, defende Verônica. 

Na mesma toada, docentes também têm autonomia para propor ações. Foi por sugestão da equipe de Língua Portuguesa para lidar com a timidez das(os) adolescentes, que começaram a fazer saraus em sala de aula. A garotada foi sendo conquistada e o projeto se ampliou para um café literário de todas as turmas. “A escola reafirmar que eles podem ser quem são, e valorizar o que eles trazem, é muito transformador”, observa Verônica.

O engajamento das(os) adolescentes não parou por aí e decidiram criar o Show de Talentos. Inteiramente organizado pelas(os) estudantes, é o momento do ano mais esperado.

Adolescentes apresentam seus talentos em festa da escola. Crédito: Matheus de Araújo

Em meio aos preparativos para o show, passagens de som e decorações da quadra que se tornará o palco de múltiplos talentos, o grêmio organiza a lista de participantes, a ordem das entradas e a apresentação que vão conduzir. 

Enquanto isso, compartilham a questão mais recente que enfrentaram. “Eu sou a única menina do grupo e às vezes fico sozinha. Queria ter outra menina comigo, mas eles chamaram um menino [para participar da chapa]”, lamenta Isabelle Beatriz de Souza, de 12 anos. Breno Luciano de Souza Coutinho, 12 anos, presidente do grêmio, emenda: “A gente errou e eu admito. Precisamos trazer mais uma menina para cá”. 

Em outro canto, um grupo de trancistas, que aprenderam a arte com a família e na internet, enfeita o cabelo das colegas para a festa. “Eu acho isso maneiro porque a gente expressa mais as nossas técnicas e a cultura africana”, diz Bianca de Souza, 13 anos. 

Do lado de fora, um carrinho distribui pipoca e algodão doce para uma fila de estudantes animadas(os). Outros, jogam ping-pong e ensaiam suas apresentações. É véspera do Dia das Crianças e Elisabete lembra as(os) estudantes: “Estamos aqui para celebrar a vida de vocês”. O show de talentos começa, Dorcelina está em festa.

Comentário:

  1. Que orgulho sinto por essa escola, nessa luta potente e incansável por uma educação antirracista.
    Sou muito grata por, em algumas ocasiões, ter tido a oportunidade de ali desenvolver atividades, tendo como pauta a temática étnico-racial.
    Parabéns a todos os envolvidos, pelo trabalho de excelência!🌺

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