Efeitos da pesquisa-ação em equidade educacional

A pesquisa-ação vem gerando impactos, principalmente, de conscientização e fomento ao diálogo sobre equidade

Por Elie Ghanem*

A relação entre igualdade e educação foi vista por muito tempo como uma questão de acesso à escola. Em diferentes países e épocas, a escolarização assumiu uma função primordial de meio para a mobilidade social. Nesses lugares e tempos, mais anos de estudo vieram a significar maiores chances de se empregar e de ocupar postos de trabalho com maior remuneração e prestígio. De fato, nem sempre isso ocorreu, especialmente porque há períodos em que o mercado de empregos fica saturado e a oferta de pessoas escolarizadas supera grandemente a procura.

Houve um aumento na proporção de trabalhadoras/es “sobre-educadas/os” no Brasil, ou seja, com escolaridade superior à exigida por suas ocupações. Em 2012, eram cerca de 26% das/os trabalhadoras/es, percentual que cresceu para 38% em 2020, permanecendo estável até 2023. Mas a crença ideológica de que a escolarização gera sempre melhoria de renda se sedimentou, justificando a associação da busca de igualdade com a demanda por acesso à escola.

No entanto, conforme a cobertura dos sistemas escolares foi se completando, as atenções se voltaram para as diferenças de aproveitamento e de itinerário educativo por pessoas com características variadas. A ideia de equidade passou a ser acionada para apreender as desvantagens que alguns grupos apresentavam em sua experiência escolar. Trata-se da situação de inferioridade pronunciadamente de segmentos de baixos níveis de renda, de imigrantes, de pessoas do sexo feminino, de etnias minorizadas e de pessoas com deficiência.

Variadas iniciativas surgiram para promover equidade educacional, sempre promissoras, mas insuficientes. A importância do tema é central no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4) das Nações Unidas: “Garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Este é um dos 17 ODS, que são amplos e interdependentes. Foram estabelecidos para serem atingidos até 2030, abrangendo desenvolvimento social e econômico, pobreza, fome, saúde, educação, meio ambiente, justiça social etc.

Escolas2030 e equidade educacional

Paralelamente, formulou-se o Escolas2030, um programa global de pesquisa-ação que busca criar novos parâmetros para a avaliação da aprendizagem numa perspectiva de educação integral e transformadora, com vistas a garantir o ODS 4. Desenhado para o período de 2020 a 2030, o programa se realiza em dez países. No Brasil, a iniciativa se propôs a apoiar escolas e outras organizações educativas, concebidas como “laboratórios de inovação”. Passaram a fazer parte do Coletivo Escolas2030 por apresentarem experiência acumulada em práticas consideradas inovadoras e situadas em locais de alta vulnerabilidade social.

As fundações promotoras do programa global procuraram verificar o potencial da proposta e incentivaram uma espécie de meta-pesquisa: o projeto Pesquisa-ação e equidade: efeitos em ambientes escolares inovadores, que se dedicou a elucidar se processos de pesquisa-ação em escolas inovadoras participantes do programa Escolas2030, gera efeitos de maior equidade em relações de gênero, relações inter-étnicas e relações entre estudantes com e sem deficiência.

Com apoio da Jacobs Foundation e da Aga Khan Foundation, a execução foi responsabilidade de uma Equipe de Pesquisa composta por pessoas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da Universitat de Barcelona, bem como educadoras/es de unidades participantes do programa Escolas2030: o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos Campo Limpo, a Escola dos Sonhos, a Escola Municipal Antonio Coelho Ramalho, a Escola Municipal Baniwa Eeno Hiepole e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – Câmpus São Roque.

A revisão da literatura científica constatou a necessidade de mais pesquisas sobre o potencial da pesquisa-ação em diferentes contextos de vulnerabilidade social e de diversidade cultural. Poucos trabalhos apresentam evidências de seu impacto e investigações no tema da equidade têm desenhos metodológicos imprecisos e resultados não conclusivos.

Experiências de pesquisa-ação afeitas à equidade educacional relatam estudantes que, embora submetidas/os a desigualdades, atingiram desempenhos de aprendizagem acadêmica equivalentes às/aos demais. Mas, o programa Escolas2030 reúne organizações orientadas para a educação integral, a qual requer também aprendizagens que tornem efetiva a equidade nas maneiras com que pessoas com diferentes características se relacionam.

A Equipe de Pesquisa, portanto, concentrou-se nessas relações. Mas não acreditava que chegaria a encontrar um alto impacto da pesquisa-ação em aspectos de equidade educacional nas unidades integrantes do Coletivo Escolas2030. Isso devido a três motivos principais.

Primeiro, por ser a pesquisa-ação uma prática inédita naquelas organizações, requerendo muitas providências e ajustes que retardariam a efetividade dessa prática. Em segundo lugar, o fato de as condições de trabalho serem costumeiramente muito adversas, com jornadas muito mais concentradas no fazer do que no refletir e investigar, o que arrefece o potencial do caminho escolhido. Finalmente, o caráter intrinsecamente lento do processo de pesquisa-ação, que, em apenas dois anos, estaria em uma fase necessariamente incipiente, dificultando tanto a ocorrência quanto a identificação de impacto.

Contudo, foi possível detectar sinais de que a pesquisa-ação, considerada parte das ações chamadas extra-escolares, teve impacto em relações predominantemente igualitárias e integradoras. Impacto positivo, embora sutil e não necessariamente mais pronunciado ou mais vigoroso do que o das ações das/os próprias/os educadoras/es e mesmo das/os próprias/os educandas/os. Em seu conjunto, os resultados obtidos indicam que a pesquisa-ação contribuiu para a promoção de ambientes mais equitativos.

Um trabalho de observação participante mostrou que os resultados variam conforme o contexto de cada escola, mas alguns padrões foram encontrados. Em termos de equidade étnico-racial, por exemplo, algumas escolas têm ações voltadas à educação antirracista e à promoção da igualdade racial, não havendo registros significativos de discriminação racial explícita. No que diz respeito às relações de gênero e entre pessoas de diferentes orientações sexuais, a pesquisa-ação contribuiu para transformar percepções e atitudes de estudantes, levando à inclusão de meninas em atividades esportivas e a discussões abertas sobre igualdade de gênero. Na convivência entre pessoas com e sem deficiência, detectou-se maior empatia e respeito, mas em uma escola passaram a ser notadas dificuldades no acolhimento de estudantes com deficiências invisíveis, como o autismo, que requerem maior atenção.

A informação reunida com a observação participante suporta o entendimento de que a pesquisa-ação veio gerando impactos, principalmente de conscientização e fomento ao diálogo sobre equidade. Houve a criação de comitês e oportunidades de reflexão sobre as práticas diárias, mas permanece o desafio de extinguir a iniquidade nas relações entre estudantes.

Formação docente para equidade educacional

A fim de situar a eventual contribuição de processos de pesquisa-ação à formação de docentes para a equidade educacional, também se buscou informação sobre a oferta dessa formação por órgãos gestores de redes escolares. Ou não se oferta formação em serviço tematizando aspectos de equidade educacional ou as iniciativas são pontuais e as intervenções são restritas a uma parcela minoritária do professorado. Verificou-se que a abordagem de pesquisa-ação impacta a formação docente por propiciar a revisão de pontos de vista e de conceitos sobre aprendizagem, por modificar práticas correntes ou por ser fator de ânimo entre docentes ao confirmar seus procedimentos por equidade já em andamento, além de ocasionar o compartilhamento de conhecimentos geralmente concentrados nas universidades.

A abordagem também criou situações que induzem à maior proximidade com estudantes em práticas antirracistas dedicadas à reflexão sobre identidade. Além disso, a pesquisa-ação implicou docentes estudando, refletindo e revendo procedimentos de ensino habituais, contribuindo para identificar maneiras de aprimorar práticas e elaborar ações em favor de relações de gênero igualitárias. Impactou também ao estimular mais conversas, inclusive entre docentes, fornecendo mais preparo para os trabalhos de ensino.

Impacto variado da pesquisa-ação entre estudantes

Pelo levantamento quantitativo realizado sobre as percepções de educadoras/es e estudantes, houve aumento de uma visão igualitária a respeito de como são as relações entre pessoas com e sem deficiência, atribuído inclusive a uma influência do processo de pesquisa-ação, mas não tão forte quanto a influência das demais ações de profissionais e a de educandas/os. Sobre as relações entre pessoas de raças/etnias diferentes, predominou uma visão igualitária e integradora, também prevalecente nas relações entre pessoas de gêneros diferentes e entre pessoas de diferentes orientações sexuais.

Já as informações obtidas em entrevistas sustentam a veracidade da hipótese de que a pesquisa-ação está associada a uma mudança no ambiente escolar em prol de maior equidade em relações entre estudantes. Mas isso ocorre somente em uma parte das escolas pesquisadas, na qual tal associação é variável e percebida como mais forte por uma pequena parcela. Nem todos os processos geram aprendizagens que se expressam em maior equidade.

Como a difusão de informações no interior de organizações é desigual e isso é muito acentuado em organizações educativas, o impacto da abordagem de pesquisa-ação é sentido diferentemente por diferentes estudantes. Há quem acredite haver melhorado a equidade nas relações interétnicas (mais união e entendimento mútuo) e também há quem mostrou dúvida quanto à ocorrência dessa mudança ou quanto à sua magnitude.

Foram revelados impactos diferentes em meninos e em meninas, mas com caráter complementar. A abordagem proposta ajudou a dissolver grupos isolados por sexo, os meninos passaram a conversar mais com as meninas e entendê-las mais, também ressignificaram a brincadeira com bonecas tendo em vista o seu possível papel como pais, incorporando cuidados com bebês. A abordagem apoiou as meninas para participarem com menos timidez e vergonha e compreenderem que têm direitos assim como as pessoas do sexo masculino.

Um dos aspectos particulares da pesquisa-ação é colocar as próprias pessoas da realidade investigada como as pesquisadoras, o que favorece o maior envolvimento também de estudantes, principalmente em dispositivos participativos já adotados pela escola e postos como objeto da pesquisa-ação. Esse maior envolvimento é expressado em termos como: “as crianças se sentem mais protagonistas e pertencentes, o que as ajuda a desenvolver mais empatia com quem está ao lado delas”. Essa orientação participativa tem impacto positivo na equidade educacional porque, no caso do Escolas2030 no Brasil, esta é definida como aprendizagens que são condutas além de formas de consciência: autoconhecimento, criatividade, colaboração, empatia e protagonismo.

Políticas de melhoria da equidade educacional

Nas escolas, os projetos de pesquisa-ação são conduzidos principalmente por docentes, às vezes exclusivamente. São iniciativas que contrariam as tendências das políticas educacionais chamadas de gerencialistas por Stephen Ball, que retiram autonomia profissional da categoria do magistério, prescrevem e direcionam finalidades e formas de ensino, reduzem o professorado a executor de determinações externas e superiores e buscam controlar minuciosamente as práticas docentes. Essas tendências tolhem o ânimo das/os profissionais, eliminam as oportunidades de experimentação e limitam a sua versatilidade.

Os projetos de pesquisa-ação requerem reunir sistematicamente informações relativas a práticas educacionais priorizadas por docentes para serem mais bem compreendidas e aperfeiçoadas. Em organizações inovadoras, a melhoria da equidade educacional implica políticas que difundam projetos de pesquisa-ação, oferecendo condições de tempo remunerado e de apoio técnico para favorecer a atuação livre e destacada do professorado no direcionamento do ensino.

*Elie Ghanem é coordenador da pesquisa-ação do programa Escolas2030 no Brasil e professor da Faculdade de Educação da USP