O Escolas2030 propôs a pesquisa-ação por entender que as organizações educativas inovadoras já desenvolvem soluções que promovem melhoria da educação e podem inspirar outras
Por Elie Ghanem*
Usualmente, a educação é aceita como um empenho de transmitir algo existente: conhecimentos, habilidades, formas de pensar ou de sentir. Muito raramente é vista como ações para produzi-los. A ideia de educação costuma ser alheia à de pesquisa sistemática, especialmente na parte inicial da escolarização.
Contrariando esse entendimento arraigado, o programa Escolas2030 no Brasil, desde 2019, veio agregando um conjunto de organizações educativas escolares e não escolares que formularam e passaram a realizar projetos de pesquisa sobre suas próprias práticas. A intenção é contribuir com a realização do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4, da ONU: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas/os.
Tais organizações são muito diferentes entre si, estão em variados pontos do país, mas foram escolhidas por terem algumas características em comum. Estão situadas em áreas de alta vulnerabilidade social e desenvolvem práticas inovadoras em algum aspecto de gestão, de currículo, de ambiente, de metodologia ou de intersetorialidade. Além disso, identificam-se com uma perspectiva de educação que é ao mesmo tempo integral, por voltar-se aos múltiplos aspectos do ser humano, e transformadora, por gerar aprendizagens em processos de intervenção sobre a realidade na qual as pessoas estão se educando.
O especial interesse de educadoras/es dessas organizações por seu universo local encontra consequência em seus esforços por articular-se com as dimensões sociais e culturais dos seus territórios. Coerentemente, muitas atividades realizadas por educandas/os visam à melhoria das condições materiais e de convívio desses lugares. Nesse intuito, tais fazeres se insinuam como investigação sobre as características e particularidades do entorno das organizações educativas.
É o que fazem a Escola Municipal Gonzaguinha e a Escola Municipal Campos Salles na favela de Heliópolis, em São Paulo. Articuladas com outras escolas públicas e com a União de Moradores, anualmente, desde 1998, realizam a Caminha da Paz contra diversas violências.
Crianças, jovens, pessoas adultas e idosas circulam pelas ruas reivindicando o respeito a direitos, pois se baseiam na crença de que é pela garantia destes que a paz se efetiva. Falam em consciência comunitária e fiscalização de políticas públicas. Em 2007, por exemplo, a direção e a comunidade da Escola Campos Salles viram a necessidade de coibir o tráfico de drogas, que acontecia em uma praça próxima. Mantiveram entendimentos com a Secretaria Municipal de Educação para que o espaço da praça e arredor fosse revitalizado e fossem eliminadas as grades que separavam a escola do entorno. Todas essas ideias e iniciativas decorrem de uma atitude investigativa e uma pertinácia em conhecer peculiaridades, necessidades e anseios de educandas/os e suas famílias.
Outro exemplo mais explícito de atuação educacional como investigação da realidade local é o da Escola Baniwa Eeno Hiepole, uma das dezenas de unidades indígenas municipais que praticam o que chamam de “ensino via pesquisa” em São Gabriel da Cachoeira, extremo Noroeste do Amazonas, em meio à floresta. Trata-se de uma dedicação de estudantes ao aprendizado sobre o ambiente vivo, as práticas e culturas nativas, com recurso à observação direta e detalhada, à criação de desenhos, imagens fotográficas e audiovisuais, assim como à sua história e interpretação com base nos saberes e narrativas de anciãs e anciãos. Esse conhecimento reunido e registrado contribui tanto com a continuidade quanto com a renovação de identidades culturais indígenas, absolutamente indispensáveis para um relacionamento igualitário e digno com a sociedade envolvente.
Essas são algumas das organizações educativas do programa Escolas2030 que se inclinaram também por atuar como instituições de pesquisa. Mas os estabelecimentos foram além e, nesse programa, iniciaram a constituição de pequenas equipes, essencialmente compostas por educadoras/es, que elaboraram e colocaram em marcha projetos de pesquisa-ação sobre algumas das atividades inovadoras que implementam.
Em um horizonte internacional, o programa partiu do entendimento de que raramente as escolas têm agência em reformas educacionais globais ou recebem evidências de pesquisas de melhoria das próprias escolas; além disso, as pesquisas são geralmente caracterizadas por conduzir uma narrativa de déficits, em vez de dar importância àquilo que funciona.
O Escolas2030 propôs a pesquisa-ação no intuito de mudar essa realidade, por entender que as organizações educativas inovadoras já desenvolvem soluções que promovem melhoria da educação e podem inspirar outras organizações, além de políticas nacionais e diretrizes globais de educação.
No Brasil, a Feusp (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) e a organização de ativistas sociais Ashoka assumiram a responsabilidade pelo programa. O objetivo proposto foi realizar a tarefa colocada pela iniciativa internacional, qual seja, concretizar um programa de pesquisa-ação longitudinal sobre como e porque escolas e comunidades vêm conseguindo avançar sob significativos desafios e quais soluções novas poderiam ser integradas em escala nas políticas educacionais.
O programa Escolas2030 no Brasil se propôs a transformar os indicadores educacionais nacionais, ao evidenciar dimensões de aprendizagem priorizadas em organizações educativas (como foi dito, não somente escolas) que procuram garantir as condições para uma educação integral e transformadora para todos e todas. Para isso, buscou organizações que criam novas formas de realizar a educação. Pesquisadoras/es de cada uma dessas organizações, com apoio da Feusp, passaram a compor coletivos, buscar e promover desvios positivos (“aquilo que funciona”) a partir das práticas educacionais que já colocavam em andamento.
Levou-se em conta que, quando a pesquisa é concebida como uma atividade de construção de novo conhecimento, muitas vezes fica associada exclusivamente à universidade. No entanto, adotou-se a posição de que pesquisar pode ser um processo mais amplo, realizado também por pessoas de fora do âmbito acadêmico, e priorizar desafios práticos da vida comum, conhecendo-se mais sobre o mundo, sobre os outros ou sobre si mesmas/os.
No universo de opções metodológicas de pesquisas colaborativas, o programa optou pela vertente da pesquisa-ação. Esta pode ser utilizada de diferentes maneiras, com intenções diversas, mas assume como premissa básica que a pesquisa e a ação devem caminhar juntas. Além disso, a opção foi por uma alternativa que é ao mesmo tempo um processo de aprendizagem e um processo de ação política porque modifica agentes e formas de exercício de poder. O entendimento, em síntese, foi de que a pesquisa-ação é “agir conhecendo e conhecer agindo”.
Na Escola Municipal Antonio Coelho Ramalho (Ibiúna, SP), por exemplo, foram duas as práticas educacionais focalizadas na pesquisa: trabalho em grupo; organização do plano de estudos. É uma escola pequena, de ensino fundamental I, abrangendo crianças de 6 a 10 anos. A equipe decidiu pesquisar sobre a aprendizagem cooperação e a aprendizagem protagonismo. Realizavam-se atividades em grupos de quatro alunos, tendo a heterogeneidade como princípio para a composição: alunos de idades, séries, e conhecimentos diferentes. As atividades eram organizadas em planos de estudos com temas de interesse das/os alunas/os.
O objetivo que o projeto de pesquisa propôs foi: “desenvolver o protagonismo (saibam agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça; aprendam a usar o diálogo nas mais diferentes situações e se comprometam com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país)”. Variadas atividades foram sendo experimentadas e submetidas à observação controlada. Os resultados são interpretados para a proposição de ações de melhoria, com as quais se repete o ciclo de observação, interpretação e novas ações.
Educação Superior para produzir e Educação Básica para transmitir?
No entanto, todo esse movimento enfrenta o fato de que, há muito tempo, as escolas de educação básica estão concentradas em um tipo de fazer batizado como ensino. Os estabelecimentos são entendidos como lugares destinados à educação e, no Brasil, sua atuação está legalmente dividida em dois níveis. Um que é a educação básica e outro, que lhe é colocado acima, é a educação superior. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96) que assim discrimina e também segmenta a educação básica em outros três níveis: a educação infantil, seguida pelo ensino fundamental, vindo posteriormente o ensino médio. Essa nomenclatura é fartamente conhecida, mas poucas vezes nos detemos em pensar qual seria o motivo de, para as crianças mais novas, a atenção ser designada de educação (infantil) e, para as pessoas com mais idade (a partir de seis anos), o rótulo passar a ser ensino.
Pode-se supor que a noção de educação tem maior amplitude, sendo o ensino um tipo limitado de educação, muito associado à ideia de transmissão de saberes. Seja como for, para a primeira infância, as/os legisladoras/es colocaram a finalidade de “desenvolvimento integral”. Já no nível seguinte, o objetivo é “a formação básica do cidadão” e, no nível médio, são quatro finalidades: “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental”; “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando”; “o aprimoramento do educando como pessoa humana”; “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos”.
Para o conjunto da educação básica, a lei atribui o objetivo de, principalmente pela “alfabetização plena e a formação de leitores”, “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. A lei se restringe à educação escolar e sentencia que esta “se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias”. Quer dizer, a lei induz a educação escolar a se concentrar no ensino, muito correntemente visto e praticado como a apresentação de saberes previamente existentes, que
se pretende tornar uniformemente compartilhados por todas as pessoas.
Essa especificação encaminha um entendimento que circunscreve a investigação e a criação de conhecimento como encargo próprio da (até mesmo restrito à) educação superior. Sedimenta- se uma concepção que abre um fosso entre ensino e pesquisa, conferindo um lugar praticamente exclusivo a cada um. Ou ainda, confinando a pesquisa ao segmento da educação superior e a banindo da educação básica.
A Constituição não inclui pesquisa na educação básica, mas determina que as universidades “obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” em seu artigo 207, cujo parágrafo 2º faz aplicar o artigo também “às instituições de pesquisa científica e tecnológica” (deixando presumir que as escolas básicas não se incluem entre estas). A ligação entre ensino e pesquisa na educação básica não é expressa, apenas pode ser cogitada entre os princípios que devem ser base para o ensino ministrado, um dos quais é o da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, II).
O predomínio dessa mentalidade refreia muitas movimentações inovadoras nas organizações de educação básica. Favorece a tendência acentuada mundialmente de acuar o professorado na posição de mero executor de determinações de fora e de cima. Esse direcionamento vai na contramão de tendências já explicitadas há mais 40 anos, que enfocam o aprendizado das organizações e enfatizam a concepção da/o professor/a como profissional reflexivo. Essa perspectiva necessária seria possível sem que educadoras/es e educandas/es se aliassem em projetos próprios de investigação?
*Elie Ghanem é coordenador da pesquisa-ação do programa Escolas2030 no Brasil e professor da Faculdade de Educação da USP