A rede defende um currículo vivo, que contempla os sujeitos e potenciais dos territórios, sendo estes protagonistas no processo de construção da educação inovadora
Por Nilcelia Gonçalves Rosa, Robson Francisco Costa e Vera Von Kriger*
Para muitos se referir ao currículo remete imediatamente à ideia de identificação e expectativa de algo, conteúdos curriculares, metodologia, ou seja, um documento estático, “pronto e acabado”, determinante do fazer pedagógico.
Essa visão é evidenciada nos anseios por resultados mensuráveis em dados quantitativos e percentuais advindos principalmente de avaliações de larga escala, assim como mecanismos e instrumentos avaliativos que visam meramente obter “notas”. Ressalta-se que esta percepção está equivocadamente associada à qualidade das aprendizagens, desconsiderando o desenvolvimento da integralidade dos sujeitos nas dimensões biopsicossocial e espiritual.
Esta concepção é sustentada pelo tensionamento da sociedade e dos órgãos governamentais responsáveis pela educação, bem como pelas expectativas do poder legislativo. Diante desse cenário, cabe às secretarias de educação envolver Estado, família e sociedade nesta corresponsabilidade, compreendendo que a qualidade vai além das notas, referindo-se ao desenvolvimento integral dos sujeitos.
Assim, na rede municipal de educação de Almirante Tamandaré, no Paraná, a concepção de currículo se contrapõe a essa ideia, compreendendo-o como um documento consistente, abrangente, flexível, que expressa a utopia do que se almeja, um dever ser ou, nas palavras de Paulo Freire, um anteprojeto, que tem o sentido de reduzir as desigualdades sociais fundamentado na legislação e nos princípios da justiça social, tais como: liberdade, igualdade, equidade de oportunidades para todas e todos, a partir da construção coletiva e colaborativa dos sujeitos, em suma, da formação humana.
Além disso, ao definirmos o currículo, elencamos conceitos que, por um conjunto de razões, possibilitam uma melhor compreensão, sendo eles: caminho, percurso, posicionamento, escolhas, vida em contínuo movimento! Assim, sempre haverá a necessidade de reconstrução ao longo da temporalidade, uma vez que essas expectativas e demandas são superadas, sempre surgirão outras, decorrentes dos contextos vivenciados pelos sujeitos e dos territórios expressos no currículo. Isto é, um currículo sempre é contemporâneo ao contexto.
Nesse sentido, a rede municipal de educação posicionou-se na defesa de um currículo vivo, o qual contempla os sujeitos de direitos e potenciais dos territórios, sendo estes protagonistas no processo de construção e do fazer de uma educação inovadora, transformadora e antirracista.
Para isso, o município de Almirante Tamandaré instituiu sete Territórios dos Saberes, que definem-se como divisões simbólico-administrativas, que representam a participação social dos sujeitos na relação com os espaços de aprendizagens, saberes populares – interculturais e intergeracionais, equipamentos públicos de acesso aos serviços essenciais, potenciais, singularidades e especificidades locais, fortalecendo a Educação Integral, Rede de Direitos, gestão compartilhada e a intersetorialidade, garantindo assim o Direito à Educação previstos na Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, Almirante Tamandaré valoriza as diversidades e os diferentes saberes, experiências e conhecimentos – do popular ao científico -, reafirmando o que disse Paulo Freire: “não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”, que são construídos por meio das relações históricas e culturais dos sujeitos.
Assim, fundamentados na proposta freireana, o planejamento e a metodologia de trabalho da construção do currículo da rede municipal de educação de Almirante Tamandaré foram alicerçados na participação democrática, ou seja, no e com o “povo” nos Territórios, por meio de círculos de cultura, diálogo e escuta. Esse movimento denominou-se Caravana da Educação!
Mas, afinal, o que é uma Caravana da Educação? A Caravana da Educação constitui-se num programa que expressa o movimento de mobilização e articulação social que percorreu os territórios do município, promovendo escutas dos diversos atores sociais da comunidade: educandos, trabalhadores das unidades educacionais, famílias, lideranças comunitárias e religiosas, comerciantes, empresários, representantes dos colegiados, dentre outros, sobre os desafios e anseios para a educação, visando a efetivação do direito às aprendizagens.
Esse movimento foi de grande relevância, uma vez que envolveu a participação da sociedade em encontros, reencontros, vivências, diálogos, partilha de saberes, nas quais cada sujeito teve o seu lugar de fala respeitado e assim contribuiu com ideias e expectativas na busca de alternativas para uma educação inovadora, transformadora, justa, equitativa e de qualidade.
A primeira edição da Caravana da Educação percorreu os vastos territórios, reunindo aproximadamente 3.500 sujeitos nos 136 encontros realizados, acolhendo seus anseios e o esperançar por uma educação pública contra-hegemônica.
Das escutas realizadas, originaram as temáticas que compõem os 14 cadernos do currículo, que foram construídos por grupos de trabalho constituídos por trabalhadores da rede municipal de educação e representantes da sociedade civil (conforme já mencionado), que engajaram-se neste processo coletivo fortalecendo a corresponsabilidade na construção e implementação do currículo.
O currículo da rede municipal de educação de Almirante Tamandaré apresenta um arcabouço teórico-reflexivo, alicerçado na concepção de educação integral, de modo que a rede compreenda o desenvolvimento integral dos sujeitos nas dimensões biopsicossocial e espiritual, que acontece nos diversos espaços de aprendizagem do território, reconhecendo que todos ensinam e aprendem simultaneamente.
Assim, o currículo enquanto documento que alicerça todas as ações da rede de educação contempla a concepção e conceitos estruturados nos direitos humanos fundamentais, bem como os contextos, singularidades e identidades territoriais e culturais do município, articulando-se com os temas contemporâneos transversais e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Destaca-se que na rede municipal de educação de Almirante Tamandaré há também educação integral em turno único e ampliação de tempo, ambas fundamentadas no desenvolvimento da integralidade dos sujeitos.
Ressalta-se ainda que a aprovação do currículo pela Lei Municipal foi uma grande conquista para a rede, configurando-se como uma política de estado para além da gestão atual do município, assegurando a continuidade de sua implementação.
Como desdobramentos dos avanços desse movimento democrático, em 2023, aconteceu a segunda edição da Caravana da Educação, que foi mobilizada pelos potenciais nos territórios, cujos objetivos foram: publicizar o novo currículo, legitimar a produção autoral construída com a participação coletiva, envolvendo a corresponsabilidade do Estado, família e sociedade, bem como pactuar compromissos coletivamente para sua implementação.
Para tanto, houve uma mobilização para o fortalecimento da implementação do currículo, articulando representantes da Secretaria Municipal da Educação, sociedade civil e outras secretarias.
Essa edição da Caravana da Educação apresentou objetivos singulares, que não estavam presentes na primeira edição, contudo, esses dois movimentos distintos complementaram-se, ou seja, a primeira Caravana referiu-se à construção coletiva do currículo, enquanto a segunda à implementação.
Assim, a segunda Caravana da Educação também percorreu os territórios do município, contemplando aproximadamente 3600 participantes no decorrer de 76 encontros realizados, que envolveram os trabalhadores da educação, lideranças comunitárias e religiosas, representantes dos colegiados – Conselho Escolar e APMF, Times da Defesa -, famílias, educandos e comunidades, para o debate acerca da educação integral no e com o território.
A participação da sociedade, tanto no processo de construção quanto na implementação do currículo, reverbera o pertencimento dos sujeitos no processo, reconhecendo o direito de acompanhar e recomendar ao poder público ações assertivas para a implementação do currículo.
Para tanto, foi instituída uma Comissão de Acompanhamento da Implementação do Currículo e a elaboração do Plano de Ação do Território e das unidades educacionais, assim materializando o Artigo 205 da Constituição Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa […].
Nesse contexto, a parceria com o Escolas2030 veio corroborar o apoio às organizações educativas que integram o programa na rede municipal de educação (atualmente, temos vinte unidades integrantes), fortalecer a autonomia, protagonismo e corresponsabilidade no conhecimento dos cadernos do currículo, articulando os projetos de pesquisa-ação das unidades educacionais. Também apoiou a participação da sociedade em prol da educação inclusiva, equitativa e de qualidade, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos, conforme contemplado pelo ODS 4.
Assim, reconhece-se a fundamental e expressiva participação dos sujeitos e reafirma-se que, mesmo com a existência de referenciais estaduais ou nacionais comum a todas às redes de educação, é a construção de um currículo autoral, protagonizado com e por sujeitos da sua rede de educação e sociedade civil que fortalece a continuidade e sustentabilidade de políticas educacionais de qualidade.
*Nilcelia Gonçalves Rosa, Robson Francisco Costa e Vera Von Kriger são membros da Secretaria Municipal de Educação de Almirante Tamandaré (PR) e participaram ativamente do processo de construção do novo currículo da rede .