Avaliar a qualidade da educação

O Escolas2030 levanta uma questão central: o que significa resultados de aprendizagem satisfatórios e relevantes?

Por Helena Singer*

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram instituídos pela Organização das Nações Unidas (ONU), durante Conferência no Rio de Janeiro, em 2012. Os ODS devem orientar governos, empresas e sociedades para um mundo mais sustentável e inclusivo, superando os desafios ambientais, políticos e econômicos mais urgentes. São 17 objetivos globais, sistematizados em 2015 em Resolução intitulada “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, depois encurtado para Agenda 2030. São objetivos amplos e interdependentes, mas cada um tem um conjunto próprio de metas a serem alcançadas até o final desta década. No total são 169 metas que conectam os aspectos ambiental, social e econômico do desenvolvimento.

O objetivo para a educação é o quarto e vislumbra: “Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Para alcançar este objetivo, foram definidas sete metas gerais, além de três mais específicas. Cada país signatário fez a adaptação das metas de acordo com sua realidade. No Brasil, a primeira meta foi definida como: “Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos completem o ensino fundamental e médio, equitativo e de qualidade, na idade adequada, assegurando a oferta gratuita na rede pública e que conduza a resultados de aprendizagem satisfatórios e relevantes”.

O programa Escolas2030, coordenado no Brasil pela FEUSP e Ashoka, orienta-se pelo ODS 4. Mas, levanta uma questão central: o que significa resultados de aprendizagem satisfatórios e relevantes? Esta definição é condição necessária para mensurar o quanto o país está ou não se aproximando da meta. No entanto, não há definição, apenas um indicador a ser acompanhado: “Proporção de crianças e jovens (…) que atingiram um nível mínimo de proficiência em leitura e matemática”. Ou seja, a aprendizagem satisfatória e relevante fica reduzida à proficiência mínima em leitura e matemática.

A questão das aprendizagens satisfatórias e relevantes reaparece em outras duas metas. A meta 4 determina o aumento substancial do “número de jovens e adultos que tenham habilidades relevantes, inclusive competências técnicas e profissionais, para emprego, trabalho decente e empreendedorismo”. Neste aspecto, o Brasil reduziu as competências técnicas e profissionais relevantes às “habilidades em tecnologias de informação e comunicação (TIC)” e não estabeleceu indicadores para seu monitoramento.

Já a meta 7 propõe “garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessários para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”.

Neste caso, o Brasil se propõe a monitorar: “Em que medida a educação para a cidadania global e a educação para o desenvolvimento sustentável, incluindo a igualdade de gênero e os direitos humanos, são incorporados a todos os níveis de: políticas nacionais de educação; currículos escolares; formação dos professores e avaliação dos alunos”. Neste ponto, embora já se tenham passado nove anos, nenhum indicador foi formulado.

Estamos em ano de debate sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), que deverá orientar as políticas de educação em todos os níveis da federação para a próxima década, sendo seguido por planos estaduais e municipais. É uma oportunidade para finalmente avançarmos na construção de uma visão nacional sobre qualidade da educação, que considere as oportunidades de aprendizagem ao longo da vida, aprendizagens relevantes para a realização pessoal e profissional e para a promoção da cultura de paz, a valorização da diversidade cultural e de um projeto de desenvolvimento que priorize o bem-estar de todos os seres vivos. Nesta construção, a dimensão da avaliação, com seu sistema de critérios, instrumentos e procedimentos, é determinante.

O Sistema de Avaliação da Educação Básica precisa ser avaliado

O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi criado nos anos 90 como um conjunto de avaliações externas em larga escala. Inicialmente aplicado em uma amostra de escolas, com o passar do tempo, o sistema foi se agigantando até atingir, em 2007, a totalidade das escolas públicas brasileiras. O principal elemento do SAEB é a Prova Brasil, composta por testes de múltipla escolha em Língua Portuguesa e Matemática. O Sistema se completa com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) que sintetiza, em uma escala de zero a dez, a média de desempenho dos estudantes na Prova Brasil, a trajetória escolar (idade do estudante em relação ao ano de escolarização) e a permanência na escola. Os resultados do IDEB têm grande impacto na distribuição dos recursos técnicos e financeiros do governo federal para os governos estaduais e municipais e destes para as escolas.

Passados tantos anos de uma política continuada, é necessário avaliá-la e espera-se que o novo PNE crie as condições para isso, cotejando os resultados obtidos em relação aos recursos investidos e esclarecendo para quê e a quem melhor tem servido este sistema. Afinal, por seus próprios critérios, a educação básica no país evoluiu muito pouco neste período e segue ruim: em 2005, o IDEB do país foi 3,8 (anos iniciais do ensino fundamental), 3,5 (anos finais) e 3,4 (ensino médio). Em 2023, atingiu-se 6,0, 5,0 e 4,3 para respectivamente os mesmos anos, ficando abaixo das metas estipuladas para 2021. Quando consideramos a educação para todos e ao longo da vida, o fracasso do sistema é ainda mais evidente: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023 apontam que 19% das pessoas de 15 a 29 anos abandonaram a escola antes de concluir a educação básica, o equivalente a 9,1 milhões de
jovens. Se considerarmos a população toda, temos 68 milhões de pessoas que não
completaram a educação básica.

A visão que fundamenta o SAEB é de que se trata de uma ferramenta para o monitoramento do direito a aprender dos estudantes brasileiros. Os protagonistas dos debates sobre este sistema são, geralmente, especialistas em matemática, estatística e economia*, que se aprofundam nos seus aspectos formais e impõem uma abordagem gerencialista na educação.

Na perspectiva gerencialista, “não importa a pedagogia”, o foco é a aprendizagem. Supostamente, se a pedagogia for boa, isso se evidenciaria nos resultados das provas. O equívoco nesta visão de não-educadores é que o sistema de avaliação é profundamente carregado de uma determinada pedagogia. A pedagogia orientadora do SAEB é a que propõe o processo cumulativo do conhecimento e a prioridade dos conteúdos quantificáveis, o que possibilita a seriação, a recuperação, o treinamento para provas. Também se trata da pedagogia que associa a aprendizagem ao disciplinamento de corpos, a individualização dos processos de conhecer e a primazia da competição.

Daí a forma das provas aplicadas com os alunos enfileirados em carteiras, sem poder conversar entre si ou consultar fontes e os resultados apresentados na forma de rankings. Por fim, trata-se da pedagogia que dissocia conhecimento, sempre supostamente objetivo, de atitudes, comportamentos e valores, algo
que seria impossível mensurar. Ou seja, responder corretamente perguntas-teste é mais importante – porque é o mínimo e único elemento capaz de oferecer comparabilidade de resultados – do que de fato usar a língua portuguesa, a matemática ou conhecimentos de qualquer outra área para melhorar o mundo. Tudo isso é pedagogia. A pedagogia que foi muito apropriadamente chamada por Paulo Freire de bancária.

A educação integral e transformadora sustenta-se sobre outras bases. Seu objetivo é criar as condições para que as pessoas possam se desenvolver integralmente, reconhecendo a necessidade de articulação de diversos agentes, tempos e espaços para a multiplicação das oportunidades de aprender.

Busca-se formar pessoas capazes de se sensibilizar em relação ao mundo, colaborar em equipes ou coletivos, criar soluções para os desafios do presente, expressar as potências humanas nas suas diversas linguagens e efetivamente promover mudanças positivas. Trata-se de um conjunto articulado e complexo de valores, conhecimentos, habilidades e atitudes que se desenvolvem em práticas cotidianas de tomada de decisão e responsabilização pelo bem coletivo, na convivência com os diferentes, na pesquisa aplicada e na realização de projetos. É nesta perspectiva que o programa Escolas2030 priorizou como objeto da pesquisa-ação realizada pelas mais de 100 organizações participantes as aprendizagens de empatia, colaboração, criatividade, protagonismo e autoconhecimento.

Os sujeitos da avaliação

Além de ter uma clara pedagogia, o SAEB também se fundamenta em uma profunda desconfiança em relação à capacidade de escolas e educadores em realizar seu ofício. Por isso, os agentes das escolas – equipes, estudantes e famílias – não participam dos debates e construção de indicadores para avaliação da educação. Também não participam da elaboração dos instrumentos, da sua aplicação (durante as provas, os professores não podem ficar nas salas) e nem mesmo das decisões decorrentes de seus resultados, que chegam às escolas muitos meses depois, quando já são outras as turmas de estudantes e, muitas vezes, também mudaram as equipes docentes.

Em sentido contrário aos pressupostos dos idealizadores deste sistema, as escolas que se orientam pela educação integral e transformadora desenvolvem uma multiplicidade de ferramentas que lhes permitem monitorar as aprendizagens e o desenvolvimento de seus estudantes. O programa Escolas 2030 constata que essas escolas elaboram diversos instrumentos, que incluem autoavaliação, avaliação em processo, avaliação para aprendizagem, além da avaliação institucional envolvendo todos os segmentos da comunidade.

Claro que não são todas as escolas do país que assim o fazem. Mas, um sistema de avaliação da qualidade da educação que considere as comunidades escolares como sujeitos do processo deve estimular que isso aconteça. Assim, a recomendação do programa é para que as secretarias responsáveis pela oferta da educação básica mapeiem, apoiem e difundam em suas redes “procedimentos e instrumentos de avaliação desenvolvidos pelas unidades educacionais que consideram as especificidades de crianças, jovens e adultos/as e abrangem aprendizagens necessárias ao pleno desenvolvimento da pessoa, como empatia, colaboração, autoconhecimento, criatividade e protagonismo. A difusão destes procedimentos e instrumentos deve se fazer acompanhar por processos de formação contínua para a sua
qualificada implementação”.

Um novo sentido de qualidade da educação

Como vimos, o IDEB e seus instrumentos monitoram, de fato, aspectos muito reduzidos da aprendizagem, como a capacidade de responder a testes de determinados componentes curriculares.

Além disso, os resultados são atribuídos exclusivamente às equipes escolares. Assim, quando o IDEB da escola é baixo, não há alterações nas condições de vida das famílias, nem na infraestrutura escolar, nem nas condições de trabalho da sua equipe ou nos impactos de uma estrutura racista, patriarcal e colonial nas comunidades. O que acontece é a exposição da escola como ineficaz junto às famílias, rede e mídia e, muitas vezes, a compra pelas secretarias de “soluções”, como materiais didáticos, treinamento de professores ou sistemas de gestão da vida escolar. Já quando os resultados são bons, frequentemente, a equipe é premiada com bônus salariais. É por isso que, transcorridas quase duas décadas desde a implementação do SAEB, ainda não temos a educação de qualidade para todos.

Para o Brasil alcançar o ODS 4, é prioritário que o próximo PNE crie as condições para a
elaboração de um novo sistema de avaliação, envolvendo todos os atores da educação na
formulação de instrumentos e indicadores. Avaliar é exercício de poder, hoje concentrado nas
mãos de poucos. É preciso distribuir este poder, possibilitando às equipes escolares, estudantes
e famílias avaliarem governos e políticas e, assim, consolidar-se no país uma visão compartilhada de qualidade da educação sobre a qual todos são responsáveis.

Para além das aprendizagens dos estudantes que, como dito acima, são adequadamente monitoradas por muitas escolas, cujas pedagogias e metodologias devem ser melhor conhecidas e valorizadas, há que se monitorar também os resultados da educação em relação à qualidade de vida dos estudantes e da comunidade em geral. Deste modo, a sociedade valorizará aspectos tais como: o acesso das famílias às políticas de bem-estar, saúde e outras que garantem as condições adequadas para as crianças se desenvolverem; os baixos níveis de violência dentro e fora da escola; o engajamento da escola no combate ao racismo; o engajamento dos estudantes em projetos de impacto socioambiental; e as condições tanto para a continuidade dos estudos quanto para a permanência dos jovens em seus territórios, realizando-se pessoal e profissionalmente. Estas são as condições básicas para efetivação do objetivo da educação inclusiva, equitativa e de qualidade, com oportunidades de aprendizagem
ao longo da vida para todos.

* Helena Singer é coordenadora-geral do programa Escolas2030 no Brasil e líder da Estratégia de Juventude America Latina na Ashoka

*A portaria INEP nº 188, de 20/5/2024, que Institui a Comissão de Assessoramento para Atualização do Ideb, é explícita a este respeito, detalhando o perfil de quem irá compô-la: “especialistas escolhidos dentre pesquisadores com notório saber sobre o assunto em questão e com destacada atuação nos processos que envolvem: conhecimentos metodológicos, estatísticos e/ou econométricos para a construção de indicadores educacionais e plano de metas”.