publicado dia 30/04/2021

Um retrato dos desafios da Educação do Campo no contexto da pandemia

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Selo Reviravolta da EscolaConseguir manter algum vínculo com os estudantes durante o ensino remoto emergencial é um dos maiores desafios que as escolas de todo o país enfrentam. Ao longo de 2020, 4,1 milhões de estudantes não tiveram acesso a qualquer atividade escolar, como aponta o estudo “Enfrentamento da cultura do fracasso escolar“, divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em janeiro deste ano. Para a Educação do Campo, acessar os estudantes é um obstáculo ainda maior, mas que é necessário transpor para evitar a evasão escolar e continuar a promover a proteção e o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes.

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Das mais de 180 mil escolas brasileiras, 55 mil estão na zona rural, segundo o Censo Escolar de 2019. Nessas áreas, 48% dos domicílios não possuem acesso à internet, uma taxa que aumenta conforme diminui a renda. Dos estudantes com 10 anos ou mais sem acesso à internet, 95,9% estudam em escolas públicas. Os dados são da pesquisa TIC Domicílios de 2019 (Tecnologia da Informação e Comunicação)

A falta de acesso à internet das famílias pode se somar às dificuldades de locomoção para entrega ou retirada de atividades impressas e para promover a busca ativa, uma vez que muitos desses estudantes moram a centenas de quilômetros da instituição de ensino. 

A escola estadual do campo Classe Sonhém de Cima, que fica no assentamento Contagem, a 50km do centro de Brasília (DF) e atende 152 crianças da Educação Infantil ao Ensino Fundamental 1, é um dos exemplos de instituições de ensino do campo que vivem esses desafios.

A Educação do Campo é uma modalidade que ocorre em espaços rurais, incluindo a educação para comunidades quilombolas, indígenas e em assentamentos. Ela deve ser contextualizada e manter íntimo diálogo com a realidade das famílias, os saberes locais e o território. Seu principal objetivo é permitir que as crianças e adolescentes possam se desenvolver integralmente em um espaço que respeite sua cultura e seus valores e que dê a eles a oportunidade de escolher livremente os caminhos que desejam para seu futuro.

A escola iniciou as atividades pedagógicas remotas em junho e, devido às dificuldades de acesso à internet, tudo é realizado  por meio de materiais impressos. Pela dificuldade de locomoção, a periodicidade de entrega das atividades é mensal, e feita em pontos próximos à escola. Quando as famílias não vão retirar, é a própria equipe escolar que vai até as casas dos estudantes. “Se estivéssemos esperando essa providência do poder público, muitos dos nossos alunos estariam sem nenhuma atividade impressa”, aponta Maria Aparecida Gonçalves Ribeiro, psicopedagoga na escola.

Ao mesmo tempo, os professores procuram oferecer apoio aos estudantes por meio do WhatsApp, a plataforma escolhida pelas famílias para fazer essa comunicação. As demais opções, como Google Classroom e sites educacionais das Secretarias de Educação, mais utilizadas por escolas das regiões urbanas, se mostraram inviáveis devido à baixa conectividade. As aulas por canais abertos da televisão e pelo rádio também nunca chegaram a acontecer. Mesmo o uso do WhatsApp é limitado na região: videochamadas são quase impossíveis e a troca de mensagens de texto é o caminho mais seguro para conseguir contato. O outro problema é conseguir conciliar as disponibilidades.

“Na minha turma, todas as pessoas que acompanham os estudos dos filhos são as mães, e eu dependo delas para acessar as crianças, mas tem mulheres que trabalham até 20h, tem casas com nove crianças para dividir dois celulares. Tem uma família que é de caseiros e não podem acessar o wi-fi da fazenda em que trabalham, então precisam subir um morro para conseguir sinal. Já foi um ano e essa situação continua do mesmo jeito”, relata Sérgio Luiz Teixeira, professor na escola.

Passado um mês, famílias e professores se encontram novamente para entregar as novas atividades impressas e retirar as realizadas pelas crianças. Os educadores se deparam, então, com mais um desafio: o da avaliação. 

Muitas das famílias dos estudantes da Classe Sonhém de Cima têm baixa escolaridade ou rotinas intensas de trabalho e, por isso, nem sempre conseguem apoiar os estudos das crianças. Como resultado, os professores percebem atividades feitas às pressas, com letras diferentes e outros sinais de que o ensino e a aprendizagem não estão acontecendo de forma adequada.

“Isso dificulta a avaliação dos estudantes, que já não deveria ser pontual como é agora, mas contínua e diária”, ressalta a psicopedagoga Maria Aparecida. “E isso tem colocado um trauma na criança, em relação a como é feito esse acompanhamento e as interações com os professores”, complementa o professor Sérgio. 

ImagemEsse cenário foi pesquisado e descrito por Maria Aparecida e Sérgio no artigo “Educação do Campo em tempo de pandemia: impactos, limites e desafios”, publicado em novembro de 2020 na Revista Com Censo: Estudos Educacionais do Distrito Federal. Os pedagogos também ouviram os estudantes e professores em relação a seu bem-estar nesse período de pandemia e encontraram famílias, crianças e professores adoecidos fisicamente e emocionalmente. 

“Temos muitas famílias desempregadas, mães que não sabem mais como ajudar o filho a ter motivação para estudar, e pessoas com Covid-19.Os professores, principalmente no ano passado, estavam muito angustiados. Nós ficamos de março até junho sem orientações, com decretos demorando para sair e, quando saíram, não davam o apoio necessário a eles”, relata Maria Aparecida.

As dificuldades encontradas pela escola do campo Classe Sonhém de Cima não parecem ser exclusivas dessa unidade, visto que as condições de locomoção, infraestrutura e acesso à internet se repetem, ou são até piores, pelo Brasil afora, colocando outras comunidades escolares em situações similares.

“Conversando com amigos, e nos relatos que ouço de outras escolas do campo, elas enfrentam a mesma realidade. A desigualdade do homem do campo em relação à população urbana está mais clara ainda nesses dias de pandemia, e isso tem sido reforçado por políticas públicas educacionais, que já não estão atendendo as demandas das escolas como um todo, muito menos as nossas”, diz Sérgio. 

Outra experiência: A Escola Família Agrícola de Santa Cruz 

A experiência de outra escola do campo revela que quando as condições básicas estão garantidas, sobretudo desde antes da pandemia, há mais oportunidades para o ensino remoto emergencial se desenvolver. 

“Fizemos muitas pesquisas para entender o contexto de cada família, e vimos que 94% dos estudantes têm acesso à internet em casa. Aqui temos uma condição distinta em relação à realidade do campo, pela dinâmica regional, por ser tudo mais perto, de fácil acesso. Ainda assim, tem a questão da qualidade desse acesso, que não suporta vídeo, por exemplo”, conta Adair Pozzebon, membro da coordenação da Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul (EFASC), no Rio Grande do Sul, uma escola comunitária que atende, via pedagogia de alternância, o Ensino Médio e o Ensino Técnico em Agricultura. 

A escola também recebeu doações de notebooks do Comitê para Democratização da Informática de Santa Catarina, uma instituição que já era parceira da escola. Com o início da pandemia, os aparelhos foram emprestados para os estudantes levarem para casa. Assim, puderam criar salas de aula virtuais no Google Classroom e organizar encontros virtuais entre os professores e as turmas, além de reuniões semanais entre os estudantes e seu professor-tutor, para acompanhamento individual, e encontros mensais para diálogo com as famílias.

“Em uma das atividades, por exemplo, os estudantes pesquisaram sobre a história da propriedade em que vivem. Na semana seguinte, compartilharam com a turma seus achados, e utilizaram o Google Mapas para localizar a casa de cada um no território. Nossas aulas, que estão acontecendo de forma remota desde março do ano passado, têm o objetivo de manter o vínculo com o estudante e continuar a construir conhecimentos junto com eles”, afirma Adair. 

Sala cheia na Escola Família Agrícola de Santa Cruz

Já os 6% de estudantes que não têm acesso à internet, têm baixado as propostas de atividades e feito a comunicação com os professores por meio de redes de wi-fi abertas na comunidade, como a de vizinhos, bares, posto de gasolina e de escolas que estão fechadas mas têm internet disponível. Além disso, quando a fase de restrição do município permite, a EFASC fica aberta duas vezes por semana para atendê-los.

“O trabalho desenvolvido pela pedagogia da alternância foi algo que nos ajudou a lidar com a pandemia, porque temos por concepção que o local de aprendizado dos estudantes não é só dentro da sala de aula. Os estudantes aprendem o tempo todo e qualquer espaço pode gerar novos saberes. Deixamos de ter algumas possibilidades importantes, como a da vida de grupo, da convivência, mas seguimos lutando por uma educação contextualizada e de qualidade para a população do campo”, reforça Adair.

O que é a #Reviravolta da Escola?

Realizado pelo Centro de Referências em Educação Integral, em parceria com diversas instituições, a campanha #Reviravolta da Escola articula ações que buscam discutir as aprendizagens vividas em 2020, assim como os caminhos possíveis para se recriar a escola necessária para o mundo pós-pandemia.

Leia os demais conteúdos no site especial da #Reviravolta da Escola.

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