publicado dia 09/09/2015

Qual educação teremos no Brasil daqui a 17 anos?

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Cenários são histórias que descrevem o que poderia acontecer no futuro, não o que necessariamente acontecerá (previsões) ou o que deveria acontecer (recomendações). Partir dessa definição é fundamental para entender o eixo central do estudo Cenários Transformadores para a Educação Básica no Brasil.

No contexto desafiador inaugurado pela aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), documento que orientará a política educacional até 2024, o projeto surge com o objetivo de propor debates e reflexões sobre as diferentes perspectivas educacionais em disputa no cenário brasileiro, projetando-as para 2032, ano em que se completa o centenário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932).

Realizada pela Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Conselho Nacional de Secretários pela Educação (Consed), Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE), Instituto Reos e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), a iniciativa é resultado de um processo construtivo e dialógico entre diferentes atores da sociedade que buscou valorizar a diversidade e não esvaziar os conflitos e as diferenças existentes.

É aí que se ancora a importância do projeto, na visão da gerente de Educação, Arte e Cultura do Instituto C&A, Patricia Lacerda, que integra o grupo de especialistas participantes. “A partir de um complexo cenário, é possível pensar sobre possibilidades de futuros plausíveis e, com isso, propor reflexões e estimular conversas entre vários setores da sociedade”. Ela entende que os diferentes cenários podem agregar mais clareza aos diferentes atores que disputam a educação e situá-los de maneira mais consciente diante dos investimentos e desdobramentos futuros.

O método

O processo que levou à configuração dos cenários teve início em 2014 e partiu de uma escuta ativa entre organizações da sociedade civil, movimentos sociais, governo, organizações internacionais, formadores de opinião, institutos e fundações empresariais, sindicatos, professores, diretores, pais, estudantes e acadêmicos. As contribuições desse grupo heterogêneo foram mensuradas a partir de entrevistas, oficinas presenciais e trocas virtuais. A dinâmica favoreceu a criação de conjunturas mais complexas, entende o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador internacional da sede brasileira da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), André Lázaro. “Se tivéssemos pensamentos muito semelhantes, teríamos pouca consistência”, defende. “A variabilidade de experiências, dentro e fora do sistema educacional, permitiu equilibrar as convicções de cada grupo ou indivíduos”, considera.

Esse percurso deu origem a quatro cenários sobre o futuro da Educação Básica no Brasil, batizados com nomes de pássaros encontrados no território brasileiro: Canário-da-Terra, Beija-Flor, Falcão-Peregrino e Tico-Tico.

Os cenários

Canário-da-Terra

canario_terra

  • quase todas as metas do PNE são implementadas;
  • atuação do Estado, com forte pressão da sociedade civil;
  • grandes avanços na educação pública;
  • cumprimento do PNE passa a ser central;
  • Estado cumpre papel fundamental e estratégico na garantia do direito à educação;
  • concepção de educação é ancorada nas políticas públicas oficiais e formais, pautadas nas leis e construídas e negociadas com a participação da sociedade civil;
  • parâmetros claros para determinar a relação entre o público e o privado na educação, considerando a regulação da iniciativa privada;
  • gestão da escola é democrática e os planos de educação são construídos, acompanhados, monitorados e aperfeiçoados de forma participativa, por meio dos fóruns de educação e das conferências;
  •  a escola tem a função de democratizar o acesso ao conhecimento e garantir a apropriação da cultura;
  • melhora da qualidade da escola pública aumenta a matrícula da classe média nos estabelecimentos construídos e mantidos pelo Estado.

beija_florBeija-Flor

  • reformas profundas no sistema de educação, com base em experiências bem-sucedidas no país e no exterior, motivadas por mudanças sociais, tecnológicas e ambientais;
  • renovação da educação parte de experiências desenvolvidas por escolas públicas, organizações e movimentos sociais e outros atores;
  • estímulo à inovação educacional por meio de políticas públicas estatais e não estatais, que abrem espaço para uma educação menos tradicionalmente escolarizada;
  • Estado é fomentador e indutor, garante as condições do padrão de qualidade previsto na legislação educacional e estimula as escolas a desenvolverem experimentações e a relação com as comunidades;
  • pluralidade de arranjos na relação público-privada que privilegia o não lucrativo. Porém, há uma tensão pautada pela necessidade de forte regulação e permanente controle social para que interesses privados contrários aos interesses públicos não dominem as escolas públicas, de empresários a grupos religiosos fundamentalistas;
  • estímulo à participação e ao controle social de vários sujeitos da comunidade escolar, mas ainda com desafios para que tal participação influencie as políticas nacionais;
  • valorização da diversidade, sem abordagem devida dos conflitos envolvidos na superação de desigualdades, discriminações e privilégios;
  • pluralidade de modelos, como redes e comunidades de aprendizagem, territórios de cooperação, cidades-escola e experiências de educação popular. Tal pluralidade se alimenta intensamente da relação com as tecnologias;
  • concepção de educação é pautada por princípios como equidade, justiça social e promoção da sustentabilidade socioambiental;
  • escola tem a função social de formar sujeitos de mudanças cotidianas e globais, fortalecendo a relação com os territórios, em uma perspectiva intersetorial e de trabalho em rede.

falcao_peregrinoFalcão

  • influência da visão empresarial com aumento significativo do repasse de recursos públicos para instituições privadas;
  • Estado mantém o papel de provedor, regulador, avaliador e financiador, mas abre mão de ser o principal executor das políticas e de se responsabilizar pela oferta educacional;
  • educação voltada para a formação de capital humano: mão de obra qualificada e especializada para trabalhar no mercado, com foco na proficiência, medida por avaliações externas padronizadas de larga escala;
  • avanços no atendimento quantitativo, mas pouco no qualitativo;
  • presença de um currículo único e materiais educacionais padronizados;
  • modelo de gestão por resultados e por desempenho dos alunos, e forte conceito de ranqueamento;
  • enfraquecimento do sistema de participação social. Ele se limita à liberdade de escolha da escola e à exigência pelo serviço: a família e o aluno são tratados como clientes;
  • desigualdade diminui para alguns indivíduos e grupos que conseguem romper o ciclo de desigualdade via competição (ou mérito);
  • investimento nos alunos com melhor desempenho;
  • remuneração variável para os profissionais de educação, com bônus e premiações;
  • ampliação da matrícula no setor privado por meio de subsídios e bolsas.

tico_ticoTico-Tico

  • desenvolvimento econômico é a lógica em voga;
  • Estado estimula consumo como principal força social agregadora, consegue promover uma sensação de melhoria no dia a dia das pessoas, mas há grandes impactos sociais e ambientais;
  • fragmentação das agendas e da atuação dos movimentos sociais e dos atores políticos e sociais;
  • serviço público ofertado não é capaz de garantir a pauta da qualidade dos direitos;
  • Estado tem presença, principalmente com a manutenção das políticas sociais compensatórias, e busca a universalização do direito à educação. Contudo, faz isso com baixa vontade política para enfrentar as desigualdades estruturais e reproduz padrões desiguais de qualidade;
  • predomínio da escola formal, posta na legislação, com quase nenhuma inovação. A preocupação primordial é a inserção no mercado de trabalho;
  • pouca motivação da juventude em relação à concepção educacional em voga, que não sofre grandes alterações;
  • escola busca ser para todos, mas a qualidade é para poucos. Existe inclusão precária de alguns e exclusão de outros. É uma educação massificada e medíocre, com tentativa de considerar as diversidades, porém de forma periférica;
  • gestão com ênfase em resultados, combinada com uma institucionalidade participativa, mas com baixa efetividade nas tomadas de decisão;
  • relação público-privada se estabelece como parceria na oferta de matrículas, na cultura da gestão e venda/oferta de soluções como sistemas de ensino, serviços, livros didáticos e oferta de tecnologias sociais, porém enfrenta resistências;
  • contradições e impasses nesse cenário dificultam a concretização das mudanças necessárias para que as políticas educacionais continuem avançando.

Na plataforma Cenários Transformadores para a Educação Básica no Brasil há a descrição completa dos cenários e uma tabela comparativa entre eles.

Patricia Lacerda é categórica ao dizer que o papel dos cenários não é o de deslocar a pauta do PNE, que deve ser visto como a agenda e a política de Estado dos dez próximos anos. “Qualquer cenário tem que considerar o que o governo e a sociedade vêm acordando nesse sentido”. No entanto, ela entende que é preciso um horizonte temporal maior para olhar para as questões. “O tempo dos mandatos acaba sendo um período forte, mas por mais que se tenha a responsabilidade do governo e dos executivos, pensar a educação deve ser um projeto de toda a sociedade, e esse é um primeiro sentido desse exercício”, considera.

Em sua leitura, cada cenário explicita centros de gravidades distintos. E, por isso mesmo, estão postos conflitos e contrastes, dentro de níveis de plausibilidade, clareza e relevância. “O que se colocam são chaves de leitura, como por exemplo: qual a relação possível entre público e privado? Como a desigualdade e a diversidade estão postas? São necessários diversos arranjos para olhar para estas mesmas coisas”, explica.

André Lázaro entende que os cenários se aproximam dos desejos dos diferentes atores. “Os setores comerciais vão desejar mais o que está retratado no Falcão Peregrino; um segmento mais ligado ao terceiro setor, fora do sistema formal de ensino possivelmente apostarão mais no Beija-Flor; quem aposta no fortalecimento da responsabilidade pública apostará mais no Canário-da-Terra”, avalia. Na opinião de Lázaro, o Tico-Tico é o que talvez retrate com mais precisão os atuais impasses da educação brasileira. “Tivemos avanços bastante importantes em relação ao próprio debate, na questão financiamento, mas numa perspectiva normativa que não consegue reproduzir os direitos equitativos para todos”, sentencia.

Os cenários em diálogo com a educação integral

Lázaro entende que a educação integral é a resposta para alcançar o melhor de cada cenário. “Acho que ela procura combinar um olhar generoso sobre os direitos de nossas crianças e jovens e investe numa responsabilização não só do setor educacional, mas de todas as áreas que contribuem com o desenvolvimento integral, como saúde, cultura, ciências, esportes e outras”.

Patricia entende que a educação integral está em todas as projeções, com abordagens diferentes. “Na perspectiva do Canário a educação integral aparece como um direito, mas condicionada ao que de fato está contemplado no PNE; o Beija-Flor talvez se identifique mais com o que a educação integral prevê de integração de territórios, proximidade com a cultura e diálogo com as necessidades de cada localidade. No terceiro cenário [Falcão-Peregrino] o grande diferenciador é a eficiência e a eficácia, então se a educação integral estiver no escopo da política como alavancadora dos indicadores de desempenho ela vai estar nesse lugar. E no quarto, acredito que ela ficaria mais no meandro das ações pontuais do que sistêmicas”, avalia.

Ainda assim, ela acredita que a educação integral deve perpassar todos os cenários, por ser um direito e, nessa perspectiva, como a grande estratégia de inovação da educação e como um elemento capaz de alavancar os indicadores ou situações já vivenciadas.

Participação

De maneira geral, o projeto pretende que as discussões se estendam para a agenda da educação pública brasileira, em seus diversos desdobramentos. Para tanto, aposta no engajamento da sociedade civil a partir do compartilhamento de informações e materiais, disponibilizados gratuitamente  na plataforma oficial.

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