publicado dia 08/03/2015

A escola como espaço formador para a garantia dos direitos das mulheres

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A agenda da garantia e promoção dos direitos humanos é frequentemente tensionada pelas heranças históricas e sociais ainda presentes nos contextos contemporâneos. O terreno fica ainda mais árido quando se tem sob foco grupos minoritários ou configurados como tal, caso das mulheres. Como a sociedade tem se organizado para garantir os direitos femininos? Quais percursos e embates ainda são necessários para isso? E a escola? Qual seu papel na formação de pessoas conscientes desses direitos e comprometidos com valores e condutas emancipatórias?

Com a proximidade do dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher -, data que remete à luta feminina por melhores condições de vida, o Centro de Referências em Educação Integral convidou uma das colaboradoras da Sempreviva Organização Feminista (SOF), Maria Lucia da Silveira, a falar sobre o papel da escola e da educação na formação de uma sociedade mais justa e equânime.

Centro de Referências em Educação Integral:  De maneira geral, qual o papel da educação na garantia dos direitos das mulheres? E qual o cenário do Brasil hoje nesse aspecto?

Maria Lucia da Silveira: A educação é fundamental para que se possa discutir todas as questões que hoje estão na pauta do movimento de mulheres. Se queremos enfrentar questões como desigualdade de gêneros, violência, precisamos dar esse peso para a educação pra que ela se constitua para a igualdade, para o não sexismo. Isso é um processo que deve ser construído com base em discussões sobre formação de professores, produção de materiais didáticos, currículo, e as próprias práticas para além do contexto escolar, com um repensar de valores e atitudes desde o início da formação integral dos sujeitos.

CR: Trazendo para o âmbito escolar, a escola lida com a formação de indivíduos que pertencem a uma sociedade na qual persistem as desigualdades de gêneros, econômicas, a cultura patriarcal. Assim, qual o papel dessa instituição nessa discussão?

Maria Lucia:
É o de problematizar, oferecer outros parâmetros, outros modelos de relação. Claro que os desafios são inúmeros, se considerarmos que os professores sequer encontram esse amparo durante a sua formação. Por isso, as práticas escolares acabam por reproduzir os modelos já perpetuados pela igreja, pelo mundo do trabalho, ou aqueles sustentados pelas famílias. Entendo que o esforço deve ser pela existência de um projeto político pedagógico que estabeleça o diálogo com a criança e seus pares, professores, coordenadores, familiares para a não segregação de gêneros – o que é de menino e o que é de menina – pela equivalência da mulher.

CR: E como garantir práticas emancipatórias, se os próprios gestores escolares/professores fazem parte dessa sociedade?

Maria Lucia: Isso é uma discussão política que deve ser conduzida de maneira transversal. Os currículos das faculdades de educação, em maioria, não abordam essa temática ou a inserem como optativa em caso de um professor ligado à área. Mas ou isso integra a formação da identidade do docente ou não podemos esperar que ele lide com a demanda sem nunca ter aprendido sobre ela. Ainda estamos nessa briga, no Brasil. O fato é que as discussões sobre gênero, sexualidade e diversidade sexual sofrem recuos por pressão de grupos que não compreendem a relevância dos temas, ou pelos que sustentam o sexismo, a visão da mulher como alguém subordinado, que tem em seu papel principal a maternidade. É preciso retomar o debate sempre, mas é uma questão processual.

De modo geral, não é uma tarefa fácil uma vez que estamos em uma sociedade violenta e desigual. As escolas ainda são criticadas quando promovem interação de meninos e meninas com os mesmos brinquedos, ou entregam carrinhos às meninas. Há estereótipos de gênero, preconceitos muito arraigados. E qualquer ação no sentido contrário gera um choque. Mas isso é produtivo, porque permite a discussão, a apresentação de contrapontos. É um processo que não se estabelece do dia para a noite, mas fundamental para um enfrentamento.

CR: É importante dialogar com as famílias dos alunos nessa construção? Como garantir essa aproximação?

Maria Lucia: É preciso construir um processo que envolva todos os atores do contexto escolar para que haja apropriação. Outra questão importante para esse diálogo é se despir da visão idealizada que se tem da família, entendendo que vários arranjos são possíveis nessa relação. Claro, que o ideal é que os familiares acompanhem esse processo, tenham acesso à cultura, mas essa nem sempre é a realidade. Geralmente, essas famílias têm mais acesso à mídia, à televisão propriamente dita considerando o seu o alcance, e ela é sexista, homofóbica, caricaturista. Homens e mulheres são estereotipados a todo o momento em novelas, propagandas e não há espaço para discutir isso. A mídia que educa também deseduca, ou seja, é preciso uma batalha em muitas frentes. Isso só se modifica com o ativismo de grupos que lidam com sistemas, que fazem esse debate, confrontam ideias e constroem perspectivas críticas. Não há uma receita.

Políticas para as mulheres

Maria Lucia é coordenadora da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres criada e regulamentada em 2013 com o objetivo de formular, coordenar e executar políticas e diretrizes, além de atuar nos programas de governo para a promoção dos direitos das mulheres, eliminando as discriminações que as atingem, bem como à sua plena integração social, política e econômica.

CR: Qual sua avaliação em relação aos materiais didáticos utilizados pelas escolas?

Maria Lucia: Reconheço um processo de avaliação feito pelo Ministério da Educação (MEC), mas ainda não chegamos ao ideal. Até bem recentemente se tinha a reprodução dos papeis tradicionais de gênero nas imagens dos livros didáticos e a ausência de personagens negras, por exemplo. É preciso fazer essa leitura crítica.

CR: As meninas já são maioria nas escolas e têm maior permanência escolar se comparadas aos meninos. No entanto, o acesso não garante a edificação de relações equânimes no contexto escolar…

Maria Lucia: As meninas têm mais restrições em sua socialização, então, para elas, a escola acaba sendo muito mais atrativa do que para os meninos. As situações de fracasso escolar são mais comuns entre os garotos. Há uma pedagogia oculta de gênero nas escolas que acaba por direcionar o projeto de vida dessas meninas e meninos; as meninas “naturalmente” são levadas para o lado das humanas, e as carreiras tecnológicas incentivadas entre os meninos. Veja que isso já reforça uma diferença na universidade, no mercado de trabalho, no direcionamento aos cargos que pagam mais. Quantas mulheres vemos na engenharia? Para a menina a escola acaba sendo um refúgio pois, certamente, ela estaria encarregada de funções domésticas se lá não estivesse; os meninos provavelmente estariam brincando. Elas são consideradas mais disciplinadas e eles “naturalmente” indisciplinados. O caderno da menina é bonito, o do menino bagunçado. Esses tipos de estereótipos comprometem as atitudes, as expectativas que eles tem sobre o valor dos conhecimentos, das ciências, da escola.

CR: Também recai sobre as meninas a gravidez na adolescência, grande fator de evasão escolar. Como a escola pode apoiar nesses casos?

Maria Lucia: Vejo a necessidade de um programa de acompanhamento para que, além de fatores externos que podem prejudicar o andamento dos estudos dessa menina – como ter que cuidar do filho -, ela não se sinta discriminada ou inferiorizada. E a questão aqui não é somente a gravidez na adolescência, mas a sexualidade que não é discutida na escola do ponto de vista do direito. Não dá pra falar de métodos contraceptivos descolados do desejo, das fantasias. É no terreno da sexualidade que se coloca a prevenção.

CR:  A violência também é uma realidade nas escolas. E ela se manifesta contra as mulheres e entre elas, muitas vezes revelando situações de disputa claras de uma sociedade machista. Como a escola pode mediar esses conflitos e construir outras relações?

Maria Lucia: A mediação só é possível se a escola, enquanto comunidade escolar, estiver preparada para a tarefa, feita com a construção de contrapontos, a oferta de outras oportunidades. Se temos uma cultura que reforça esses valores como uma condição social estrutural, é preciso discuti-la. Sustentamos a cultura hegemônica masculina viril, ligada ao tráfico de drogas, à imposição da força, do poder. Isso está configurado em toda a sociedade, e estoura na escola, assim como em outros espaços. É preciso enfrentar.

CR: A representação do feminino na sociedade é bastante estereotipada e, frequentemente, é possível se deparar com casos de violação aos direitos da mulher, como o caso do vídeo do Alexandre Frota. Qual o papel da escola frente a essas ocorrências?

Maria Lucia: É preciso uma leitura crítica do que está na mídia. Comentar um programa, uma novela, um filme, usar esses conteúdos para desconstruir essa cultura de violência, patriarcal, estereotipada em relação a negros, gays, mulheres e outras minorias.

 

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