publicado dia 03/06/2014

A educação popular como indutora das políticas públicas de educação

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Foi nos idos da década de 70, na Escola Municipal São João Batista, no município de Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso, que Lucinha Alvarez iniciou a sua carreira como educadora. E a prática ali experimentada ao longo de dez anos marcou o caminho pedagógico da profissional que, hoje, leciona na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Lá vivenciei uma experiência de uma escola colada à sociedade”, relembra a educadora ao afirmar que a participação popular estava no cerne daquela instituição.

A escola fazia parte de uma comunidade de camponeses e estabelecia um diálogo com a realidade local. Houve um episódio em que a escola fechou suas portas temporariamente para apoiá-los em uma luta pelo direito à terra na região. Além do diálogo com o cenário político e social, a parceria também se refletia nos processos pedagógicos da instituição. “Tínhamos o conselho de pais que era responsável pela nomeação dos professores que, além da formação, tinham que ter um compromisso estabelecido com as crianças”, conta a educadora.

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Para Lucinha era marcante o reconhecimento dos pais e alunos como sujeitos protagonistas. “Foi aí que percebi que a escola não deve ser a única proponente dos processos de aprendizagem, mas também o grupo social do entorno, com seus saberes, cultura e potenciais”, avalia.

A prática da professora e outras tantas que exemplificam os conceitos da educação popular podem ser fortalecidas se o Marco de Referência da Educação Popular alcançar um de seus principais objetivos: apoiar a construção de políticas públicas emancipatórias com base em uma educação que considere o fértil terreno existente no conhecimento acumulado do povo brasileiro. Firmado por meio de portaria no último dia 23 de maio, o marco traz para o cenário educacional reflexões sobre os ganhos e desafios para o estabelecimento de um processo de ensino e aprendizagem pautado na transformação social.

O reconhecimento de uma história

O Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas  faz um resgate da história brasileira. Ao propor a educação popular e seus princípios como indutores de práticas pedagógicas, traz à luz não só as lutas populares que já eram comuns nas décadas de 20 e 30, como as reflexões propostas por Paulo Freire, o grande precursor do movimento, que tinha entre suas prerrogativas a ideia de que a educação não fosse vista como ferramenta para a transmissão de conhecimentos e reprodução das relações de poder estabelecidas no capitalismo [a chamada Educação Bancária], mas de transformação da realidade.

Para Roberto Silva, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), o marco vem saldar uma grande dívida que o Brasil tem com o movimento popular. “É preciso revigorar os laços dessas novas gerações com a cultura brasileira”, reflete. Para ele, na época da ditadura muito se trabalhou em prol da educação moral e cívica;  a mesma lógica não foi seguida com a redemocratização do país, que acabou deixando no esquecimento o valor da cultura popular. “É importante que o governo brasileiro reconheça a educação popular como patrimônio”, avalia.

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Política Nacional de Educação Popular em Saúde 

O reconhecimento da educação popular como patrimônio aconteceu primeiramente no âmbito da saúde. Em 2013, a portaria nº2761 instituiu a política que tem por objetivo colocar as práticas populares em saúde em um plano mais amplo, de forma democrática e com participação social. “Agora, a ideia é trazer esses mesmos elementos para a educação”, atesta o professor da USP, Roberto Silva.

Essa é justamente uma das premissas do marco de referência. O documento surge com a ideia de criar um conjunto de elementos que permita a identificação de práticas de educação popular nos processos das políticas públicas, estimulando a construção de ações emancipatórias. Para sua concretização, Paulo Roberto Padilha, diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire [uma das instituições que coordenou o processo colaborativo de elaboração do marco], vê um desafio para todos os setores governamentais e sociedade civil: “É preciso torná-lo conhecido e assimilado entre todos os sujeitos e agentes que promovam ações educativas em diferentes frentes e campos de atuação e em todas as políticas públicas”, propõe.

O marco dá início a um processo que pretende chegar à consolidação de uma Política Nacional de Educação Popular. Há um grupo de trabalho estabelecido em Brasília que vem conduzindo essas discussões que, agora, caminham para um possível decreto interministerial que embase a lei de abrangência nacional capaz de estabelecer diretrizes de como operar com a proposta no regime de colaboração. Para Padilha, trazer esse debate para a realidade é como resgatar o que o movimento de educação popular fez em 1963 com o Programa Nacional de Educação. “É como superar o impacto do golpe militar de 1964; depois de 50 anos de ditadura, é importante que consigamos operar essas mudanças “, avalia.

Com o povo e não para o povo

A demanda é para que a educação popular se estabeleça para além de uma metodologia de ensino. “Queremos avançar a partir de uma concepção prático-teórica que articula diferentes saberes e práticas e que leva em consideração as dimensões culturais, dos direitos humanos, o compromisso do diálogo em todas as instâncias de educação e também com as diferentes classes sociais”, explica Padilha.

Para Salete Valesan, coordenadora executiva na sede Brasil da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a educação popular defende a causa dos empobrecidos, da democracia, da liberdade e do respeito. “Isso diz de uma construção democrática de um projeto de nação e de mundo que supere as desigualdades que assolam a nossa sociedade”, atesta.

Em outras palavras, se pretende empoderar os sujeitos, tornando-os ativos enquanto sujeitos de direitos, que reconhecem seu papel diante da história. Para Padilha, essa condução também traz uma perspectiva de desenvolvimento: “a partir da conscientização política dos indivíduos os alertamos para outra lógica, que não a do consumo. E isso só é possível porque há um resgate do papel de cada indivíduo no cerne dos percursos das aprendizagens”.

Isolated diversity tree hands

“O Marco da Educação Popular é uma política indutora para a prática de processos formativos nos vários governos e instâncias a fim de alcançar a emancipação dos indivíduos”, afirma Padilha.

A expectativa de que a conscientização, o respeito às culturas locais e os saberes prévios das comunidades ‘encharquem’ as comunidades, as academias, as escolas e as instâncias governamentais, no entanto, aponta desafios. O “popular” valida a experiência de cada um e pressupõe uma metodologia participativa, horizontal e de construção coletiva. Nesse contexto, a escola aparece como um espaço formador, mas não o único, e precisa repensar suas práticas e permitir novas articulações.

O contexto popular

Para Paulo Roberto Padilha a pauta é por uma educação intertranscultural, que parta das relações humanas entre as pessoas e de suas relações com o mundo. Daí a importância de se reconhecer a cultura e todas as dimensões da pessoa, com gostos, hábitos e maneiras de se posicionar. Para Padilha, é aí que a educação popular dialoga com a educação integral, já que considera o indivíduo em todas as suas dimensões e na sua possibilidade de participação e construção do coletivo.

Salete Valezan acredita que a educação popular possa apoiar na concepção de uma nova metodologia da prática cotidiana dentro da escola e da sala de aula, integrando o espaço da comunidade na formação e construção do saber dos sujeitos. “Hoje, se vemos práticas horizontais de aprendizagem em uma perspectiva dialógica, elas refletem muito mais uma decisão pessoal do professor do que um direcionamento do sistema educativo do país”, observa.

Ela acredita que a incorporação da educação popular no contexto escolar será lenta e gradativa. “Requer prioridade política dos governos, alteração no currículo acadêmico e de formação continuada dos professores e gestores públicos, além de uma grande mobilização e comunicação para que o conjunto da sociedade compreenda a proposta”.

Para Roberto Silva, se o poder público não fomentar essas iniciativas e não criar esses espaços de diálogo, a sociedade ficará entregue à cultura digital da televisão, com uma perda inegável de raízes, de laços de brasilidade, que, em sua opinião, já são um tanto frágeis. “É preciso que os governos  tenham essa linha de orientação, que podemos chamar de resistência cultural. Porque se vem da administração pública, vem como opção política e ideológica, e isso cria uma certa barreira a esse lixo cultural que vem de fora”, finaliza.

Saiba mais sobre Educação Popular

Padilha, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos: reflexões e canções por uma educação intertranscultural, 2007, Cortez: São Paulo. Disponível para download gratuito.

Padilha, Paulo Roberto. Currículo intertranscultural: novos itinerários para a educação, 2004, Cortez: São Paulo.

No site Participa é possível encontrar documentos orientadores utilizados na construção do marco, bem como instrumentos do Compromisso Nacional pela Participação Social.

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